Quem é o autor da música mulher do fim do mundo?

A Mulher do Fim do Mundo (2015) virou um marco na carreira de Elza Soares. O álbum, aclamado pela crítica e vencedor do Grammy Latino — o Oscar da música —, representou a consolidação de um movimento que começou ainda em 2002, com o disco Do Cóccix Até O Pescoço. A cantora, sem a pretensão de fazê-lo, dava um importante passo em direção às narrativas e às linguagens que passariam a apontar os novos rumos de sua vida e trajetória na música. 

Neste domingo (20), data em que completa um mês da morte da artista, o Portal R7 apresenta os bastidores do processo de criação da obra em que ela verbalizaria um dos seus desejos mais profundos: cantar até o fim. Guilherme Kastrup, produtor do projeto, conta que a ideia inicial era gravar um disco de releituras de sambas clássicos. Entretanto, tudo mudaria quando a intérprete foi convidada para o lançamento do disco Eslavosamba, de Cacá Machado. 

"Fizemos um arranjo especialmente para ela. E ela quando viu falou: ‘Eu amei essas guitarras no samba’. A gente ficou com a pulga atrás da orelha. Eu vi que tinha muita liga entre ela e o grupo [de artistas reunidos para o trabalho]. Sugeri um disco de releituras de sambas clássicos, depois acabei mudando a ideia para poder fazer um disco de músicas inéditas. Já que o grupo também é de grandes compositores. A Elza topou esse processo", contou. 

Com o convite aceito, a equipe dava início a produção de arranjos e seleção de repertório, que contou com as participações de Romulo Fróes e Celso Sim. "Foram mais de 60 músicas enviadas para poder fazer uma seleção de repertório desse disco. Inicialmente, eu fiz junto com Rómulo Froes e Celso Sim, que também faziam a direção artística do álbum. Ai a gente fez uma seleção de 20 músicas e levamos para a Elza para ela escolher. Nós escolhemos juntos as dez que foram para o disco."

Desde o início, o álbum foi se mostrando contemporâneo e inovador. "Levamos a Elza para ouvir as bases no estúdio e ela aprovou tudo. Ela estava sempre estimulada. Não havia distorção ou nenhuma ideia mais contemporânea que assustasse a Elza. Ela sempre foi corajosa e estimulou a fazer muitas coisas. Ela falava: 'Quero umas guitarras bem loucas'. Adorou os arranjos e partimos para colocar as vozes." 

A Mulher do Fim do Mundo corresponde ao início de um projeto ousado. A artista mergulhou nas próprias marcas para dar voz a questões como violência contra as mulheres, racismo e inevitável finitude da vida.

Maria da Vila Matilde, que estimula mulheres a denunciar casos de agressão, é um exemplo da mudança de posição em relação ao conteúdo do que até então era cantado por ela.

Para Kastrup, o sucesso álbum é resultado da união de forças entre um grupo de artistas e toda a força e história de Elza. "Alguns dos artistas mais instigados se reuniram para fazer um disco de canções compostas especialmente para a Elza."

"Isso deu uma força muito grande porque foram os compositores jovens, com um discurso atualizado e contemporâneo, escrevendo para a Elza, com a força da vida que ela tinha. Além de toda a potência artística da voz da Elza, tem também a potência da força de vida que ela tinha e das composições que foram feitas especialmente para ela", completou. 

Elza Soares

A Mulher Do Fim Do Mundo

Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé

Pirata e super homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor

Na avenida deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei
Do resto dessa vida,
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar

Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
Eu vou cantar até o fim
Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim

Até o fim eu vou cantar, eu quero cantar
Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim
Eu vou cantar me deixem cantar até o fim

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Aos 91 de idade, Elza Soares deixa uma herança cultural incomparável, construída ao longo dos seus setenta anos de carreira.

Por Letícia Finamore | Culturadora

O dia 20 de janeiro de 2022 amanheceu tranquilo e adormeceu calado. Elza Soares, uma das vozes mais potentes e reconhecidas da música brasileira, fez uma sessão de fisioterapia na parte da manhã e logo à tarde começou a ficar ofegante. Embora a cantora afirmasse que estava bem, a família percebeu uma certa queda na oxigenação de Elza. “Acho que vou morrer”, disse a artista. Não demorou para que a cantora nos deixasse: pouco tempo depois, a morte por causas naturais foi atestada. Para quem teve uma vida cheia de atribulações, Elza Soares morreu em paz.

Soares, sobrenome pelo qual conhecemos uma das maiores artistas brasileiras, não era de Elza por batismo. A cantora nasceu Elza Gomes da Conceição, em 23 de junho de 1930, no Rio de Janeiro. A mãe era lavadeira e o pai operário. Por obrigação deste, a artista se casou aos 12 anos com Lourdes Antônio Soares, que a deu parte do nome pelo qual conhecemos a artista. Com ele, Elza teve sete filhos, dois dos quais morreram de fome antes mesmo que a cantora completasse quinze anos de idade e uma que fora sequestrada por um casal amigo da família. Assim como o matrimônio, o viuvez chegou cedo: aos 21 anos.

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Elza Soares no início de sua carreira. Foto: Arquivo Pessoal

Lama

Depois de tais experiências, Elza Soares começou a investir na carreira. A cantora começou a soltar a voz com o pai, que eventualmente tocava violão nas horas vagas. Viúva e com filhos para cuidar, a cantora se inscreveu no concurso musical radiofônico Calouros em Desfile, apresentado pelo compositor Ary Barroso. Ao subir ao palco, o apresentador gozou de Elza por causa das roupas da jovem, porém depois de sua performance da canção “Lama”, de Paulo Marques e Alyce Chaves, Barroso anunciou que uma estrela havia nascido. A artista ficou em primeiro lugar no concurso.

Elza Soares chamou a atenção com sua apresentação de “Lama”, porém foi com “Se Acaso Você Chegasse”, composição de Lupicínio Rodrigues, que a artista conseguiu sucesso como cantora profissional, em 1960. Dois anos depois, Elza foi convidada para cantar para a Seleção Brasileira de Futebol, que se encontrava no Chile em decorrência da Copa do Mundo de Futebol Masculino – evento em que o Brasil foi campeão. Por lá a cantora conheceu o cantor estadunidense Louis Armstrong, que ficou encantado com a potência vocal da artista.

Amor

Além de seu encontro com Armstrong, uma paixão surgiu nessa mesma viagem: Elza se encantou com Mané Garrincha, jogador brasileiro. Os dois começaram a se relacionar e o casal virou alvo da imprensa, uma vez que Garrincha era casado. Em resposta à sociedade conservadora, a artista gravou a canção “Eu Sou A Outra”, na qual canta “Quem me condena/ Como se condena uma mulher perdida/ Só me vê na vida dele/ Mas não vê na minha vida”. Pouco tempo depois, Garrincha foi morar com Elza em sua casa no Rio de Janeiro. Durante a ditadura militar, a residência do casal foi metralhada, e por isso a família se mudou para a Itália, onde conheceram Chico Buarque e Marieta Severo.

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Elza Soares e Garrincha. Foto: Arquivo – Estadão conteúdo

Os problemas com Garrincha não se restringiam apenas ao início do relacionamento do casal, enquanto o jogador era casado, mas também abrangiam episódios de violência doméstica e de alcoolismo, por parte do jogador. Juntos, tiveram um filho, apelidado de Garrinchinha, que morreu aos nove anos em um acidente de carro. O craque do Botafogo morreu três anos antes da morte do filho em decorrência dos desdobramentos de seu alcoolismo, que resultou em uma cirrose hepática. Garrincha foi o grande amor de Elza Soares e, coincidência ou não, ambos morreram no mesmo dia, porém com trinta e nove anos de diferença: Tanto Elza quanto Garrincha partiram em um dia vinte de janeiro.

Reinvenções

Tantos abalos na vida da artista não a fizeram desistir. Mesmo nos anos 1980, em seu período de menor sucesso, o desânimo de Elza foi desfeito por Caetano Veloso, que a chamou para trabalhar com ele. Sua discografia passeia por diversos gêneros: samba, jazz, música eletrônica, funk e hip hop. A cantora sempre buscava se reinventar, mesmo com a idade avançada. Além de seus renascimentos artísticos, Elza renovava conceitos que eram cristalizados na época em que cresceu. Dessa forma, a cantora abraçou causas do movimento negro, feminista e LGBTQIA+. Bem como um símbolo de empoderamento, Elza transformou a cultura brasileira em diversos âmbitos. 

Quem é o autor da música mulher do fim do mundo?
Elza Soares. Foto: PATRÍCIA LINO/ DIVULGAÇÃO

No ano de 2000, ao se apresentar em Londres ao lado de Gal Costa, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Virgínia Rodrigues, a rádio londrina BBC premiou Elza Soares com o título de “Melhor Cantora do Milênio”. Um de seus discos mais potentes é “A Mulher Do Fim Do Mundo”, lançado em 2015. Em uma composição homônima, Elza Soares canta “Me deixem cantar até o fim”. E assim foi feito: a cantora continuou em atividade até seu penúltimo dia de vida, quando gravou um DVD no Theatro Municipal de São Paulo. Assim como o conteúdo audiovisual, um álbum de estúdio está programado para ter lançamento póstumo; ambos os trabalhos ainda não têm data para vir ao mundo. A mulher do fim do mundo não só cantou até o fim, como também terá sua voz ecoada por todos os cantos até mesmo depois do fim.

Quem compôs a música Maria da Vila Matilde?

Douglas Germano

Quais são as fontes sonoras encontradas na obra Maria da Vila Matilde?

No repertório, as faixas abordam temas como negritude, feminismo, transexualidade e violência doméstica — assunto da poderosa Maria da Vila Matilde, que Elza Soares vivenciou na pele.