Quais são as relações de democracia e república com o de cidadania?

I- Dimensões da república

Há muitos modos de expor o conceito de república. Um deles, mais abrangente — e talvez, também, mais superficial –, é explorar diferentes dimensões de um mesmo complexo, e então discutir seus entrelaçamentos. Vamos fazer essa opção, discutindo três dimensões: a) a república como regime da liberdade; b) a república como império da lei; e c) a república como regime da participação. Entenda-se “regime” como um termo mais amplo do que o governo ou as instituições formais de decisão e gestão — o regime é o ideal e a prática de uma boa ordem política, essa última levando em conta não só procedimentos, mas certa expectativa na qualidade das relações entre governantes e governados, instituições e cidadãos. Voltaremos a falar sobre isso adiante.

Naturalmente, a última dimensão é a que vai mais interessar neste espaço. Contudo, a riqueza de seu significado, e os problemas de sua maior ou menor afinidade com a questão democrática — o tópico final deste artigo –, aparecem mais claramente se considerarmos as outras duas. Do ponto de vista da república, somos inclinados a pensar, com base na ênfase da tradição nesse tópico, que o regime da liberdade é o ideal que rege todos os demais e, portanto, é quase obrigatório começar por ele.

A obsessão com o tema da liberdade é um dos traços mais peculiares do republicanismo e talvez sua maior contribuição ao pensamento político moderno. Histórica e culturamente, esse tema parte da distinção, que vem da Antiguidade Clássica, entre a condição do homem livre e a do escravo (cf. Pitkin, 1978, p.530ss). Na verdade, essa distinção não é o reflexo direto da estrutura social em que floresceu o republicanismo moderno, pois o escravismo propriamente dito não pertence ao seu contexto. Contudo, esse republicanismo (cujo marco é o chamado Humanismo Cívico, corrente do Renascimento italiano) inspira-se, até como fonte de autoridade, na cultura da Antiguidade Clássica, no estudo do conjunto de sua experiência histórica, e deixa-se influenciar pelos termos e argumentos de suas elaborações políticas. A diferença entre o homem livre e o escravo torna-se então uma referência geral, abstraída de sua origem social concreta, e ponto de partida para o entendimento da questão da liberdade no mundo político. Essa abstração, aliás, já havia sido empregada pelo próprio pensamento antigo, quando tratava de entender, por exemplo, a diferença entre as formas de governo: ainda que, rigorosamente falando, não houvesse entre governantes e governados uma relação social de senhor e escravo, um regime poderia ser considerado uma forma “corrompida” se nela predominasse algo do tipo por analogia: a tirania ou o despotismo, se quisermos ficar com dois termos clássicos.

Numa perspectiva moral, a escravidão pode ser entendida como a condição mais abjeta que um homem pode viver. No pólo oposto, o cidadão é a condição mais digna a almejar. Obviamente, o cidadão é um homem livre (isto é, não-escravo), e há como que uma ligação necessária entre uma coisa e outra, embora esta não seja tão óbvia como parece. Entre o cidadão e o escravo poderá haver uma série de condições intermediárias: considerem-se os casos históricos da mulher, do estrangeiro, dos filhos etc. Mas seria precipitado qualificar o cidadão de modo muito substantivo, apenas através das marcas de seu status social: a pessoa livre do sexo masculino, o proprietário de terras, o membro de uma família de escol etc; ou apenas pelas convenções que levam ao reconhecimento legal de um cidadão. Tudo isso é importante, claro, e precisaríamos levar em conta seu impacto na definição do cidadão. Importa salientar, porém, que essa definição envolve antes de mais nada uma elaboração normativa: o que se espera de um cidadão, a orientação de sua conduta, e as práticas, institucionais e extra-institucionais, que devem ser promovidas para que essa orientação prevaleça. Para além das convenções e das marcas de status, é isso que dá tensão ao pensamento republicano e peculiaridade à questão da liberdade.

Falamos antes de governantes e governados, e senhor e escravo. Mas para falar do ideal de liberdade no registro que acabamos de mencionar, talvez seja interessante tratar ambas as relações como modos distintos de governar. Porque tanto o cidadão quanto o escravo precisam ser governados. Embora o cidadão seja um homem livre, isso não significa que ele faz tudo o que quer — a liberdade como atributo moral e político é uma condição comunitária que impõe ao seu detentor uma série de exigências. É claro que nessa condição há sempre espaço para realizar parte do que vier a desejar. O escravo, obviamente, também não faz tudo o que quer; por outro lado, não é impossível, mesmo nessa condição, que também haja espaço para fazer uma parte do que deseja. Dependendo do tipo concreto de escravidão, poderá haver mais ou menos espaço nesse sentido: a Grécia e a Roma antigas, diga-se de passagem, conheceram tanto as formas brutas quanto as brandas de escravidão, e houve aquelas em que o escravo tinha até mesmo a liberdade de realizar negócios comerciais, o que eventualmente poderia ser vedado ao seu senhor.

Em suma, fazer tudo o que se quer e não fazê-lo absolutamente não é a linha que demarca as duas condições. Qual a diferença então? Um ponto crucial é pensar a liberdade do cidadão como uma condição eticamente superior, isto é, a república como um tipo de relação entre governantes e governados voltado para a realização disso. É assim que, numa certa vertente do pensamento clássico antigo, a política surge como uma forma de vida superior, a “vida boa”, a qual é distinguida do “mero viver”, a situação do escravo. Mas essa é apenas uma das maneiras de elaborar a questão. Um outro modo é inverter os pontos de partida: em vez de se concentrar em qual seria positivamente essa condição superior, estipular a condição a ser rejeitada. Aqui, retornamos ao tema do que caracterizaria ser governado como um escravo. A resposta a essa questão define o governo ou regime “não-político”, “despótico” ou simplesmente a “dominação”. O oposto disso seria o governo “político”, a república. Segundo alguns estudiosos, esse teria sido o caminho preferido do republicanismo moderno.

Despotismo e dominação são termos que, no grego e no latim clássicos, respectivamente, derivam da expressão para “senhor”. Essa, contudo, também se refere ao ambiente — a “casa”, o “privado” — em que o senhor está credenciado a exercer seu poder de mando específico, o poder discricionário. Quem está sob o poder discricionário do senhor, vive a condição do escravo. Assim, por oposição, o poder político propriamente dito é não-discricionário. Seria oportuno, então, entendermos melhor o que é exercer o poder discricionariamente. Por outro lado, falamos da “casa” como um espaço social credenciado a essa prática. Claro que estamos nos referindo à casa da Antiguidade, onde a escravidão era perfeitamente admitida e até considerada um dado “natural”. Contudo, a casa entendida desse modo também serve de contraste para outro ambiente, esse sim apropriado ao cidadão: a “praça”, a ágora ou fórum. Se a casa é o lugar “privado” ou “fechado”, onde a política não pode, e mesmo não deve acontecer, a praça é o lugar “público” ou “aberto”, adequado não só ao governo político mas ao convívio de cidadãos. Mesmo que a escravidão tivesse historicamente perdido sua referência à casa, esse contraste permaneceu como topos da elaboração republicanista e outro ponto de adensamento do ideal de liberdade.

II- O império da lei

Uma maneira de esclarecer o significado do poder discricionário é a dimensão “império da lei” da república. De novo, o ponto de partida é o contraste com o governo do senhor sobre o escravo. O senhor governa o escravo segundo o seu capricho, a marca da vontade arbitrária. Embora o cidadão seja governado, não deve sê-lo pelo capricho — esse é o sentido primeiro da lei, que então se coloca no lugar de diversas noções positivas: a constância, o limite, a moderação, a medida ou proporção, o tratamento igual, a justiça, a razão etc. Todas elas são como que diferentes garantias da liberdade, as quais são sintetizadas na noção abrangente do império da lei. Já o capricho, promovendo noções exatamente opostas, perfaz o quadro do poder discricionário, avesso à lei.

Contudo, se esmiuçarmos melhor aquelas noções positivas, veremos que a questão da lei não passa necessariamente por pressupor uma capacidade intrínseca para produzir certos resultados e não outros. Por exemplo, decisões justas ou corretas. Nenhuma lei ou sistema de leis humanas é perfeito, e portanto sempre haverá a possibilidade de produzir resultados incorretos ou injustos, dependendo do caso e da circunstância. Como já indicava um argumento ancestral, nenhum conjunto de leis poderia prever toda a variedade de conflitos humanos que venha requerer a sua mediação; além disso, quando se trata de aplicá-la, a lei pode sofrer a inconstância e variabilidade de seus intérpretes, e com isso aumentar as chances do resultado negativo. Nada disso, porém, afeta o ideal do império da lei: a república tem na lei uma referência primordial, não por causa de uma expectativa ingênua de seu desempenho substantivo sempre perfeito, mas pelo caráter do relacionamento que promove entre o governo e os cidadãos.

A comparação com o governo do senhor vai ajudar a compreender esse raciocínio. Vejamos: esse tipo de governo não exclui a hipótese de um senhor que governe seus escravos de modo benevolente. A benevolência, claro, não é o mesmo que a justiça, porém está longe de significar algo em si negativo. São muitas as estórias, na tradição da Antiguidade, de senhores com esse perfil. É o que se costuma chamar, como dissemos acima, de escravidão “branda” ou “doce” — geralmente, aquela que opera no âmbito familiar, o mais íntimo da casa –, distinta da escravidão “bruta”, típica das grandes minerações e explorações agrícolas. (Algo que também não é desconhecido das experiências modernas, como a brasileira, ou seja, o escravismo da “casa grande e senzala”.) Contudo, o mando benevolente nem por isso é menos caprichoso: o senhor é benevolente não por conta de uma exigência normativa, mas porque assim o quer e nada mais. E o fato de ambos, senhor e escravo, saberem disso, imprime um certo caráter no relacionamento que até reforça, em vez de abrandar, a conduta servil: o escravo tenderá a comportar-se de modo ainda mais subserviente a fim de não dar ensejo à quebra do mando benevolente. É o que Quentin Skinner (1999), estudando o desenvolvimento desse tema no pensamento republicanista, registra como comportamento obnóxio (obnoxius), uma das conseqüências mais sutis da dominação:

“Entre os moralistas e historiadores [romanos] (…) encontramos o termo aplicado mais amplamente para descrever o predicamento de qualquer um que dependa da vontade — ou, como dizemos, da boa vontade — de alguém mais. Salusto, por exemplo, reclama em seu Bellum Catilina que, ‘desde que nossa república submeteu-se à jurisdição e ao controle de poucas pessoas poderosas, o resto de nós fomos [nos tornamos] obnoxii, vivendo em subserviência a elas’, ao que ele acrescenta que viver numa tal condição é equivalente à perda de nossa liberdade civil” (Skinner, pp.44–45).

É esse predicamento moralmente distorcido que a república, ao ancorar-se na lei, procura afastar. Note-se, porém, como a elaboração, para pensar a questão da liberdade e da lei, é finamente atenta à qualidade do relacionamento civil, transcendendo portanto a mera observação da existência formal da república. Assim, o que importa na afirmação do império da lei é menos o aspecto exterior da lei do que as condições morais e políticas que possibilitam sua operação. Cito outra vez Skinner a esse propósito:

“A principal tese na qual os autores neo-romanos [os autores modernos inspirados nos historiadores e moralistas romanos] insistem, contudo, é a de que nem sempre é necessário sofrer este tipo de coerção aberta para ser privado de sua liberdade civil. Você pode também se tornar não-livre se simplesmente cair numa condição de sujeição ou dependência política. (…) Isso quer dizer que, se você vive sob alguma forma de governo que permite o exercício de poderes prerrogativos ou discricionários fora da lei, você pode já estar vivendo como um escravo. Seus governantes podem optar por não exercer esses poderes, ou podem exercê-lo apenas com o mais sensível cuidado em relação às suas liberdades civis. O simples fato, porém, de que seus governantes possuem tais poderes arbitrários significa que o gozo continuado de sua liberdade civil permanece o tempo todo dependente da boa vontade deles. (…) E isso, como eles já explicaram, é equivalente a viver em uma condição de servidão.” (Idem, p.62)

Retomando agora a questão da benevolência. Do mesmo modo que o governo despótico não é incompatível com o caráter benevolente do senhor, e pode até significar uma vida individualmente sem perturbações para pelo menos alguns de seus governados, um governo regido pelo império da lei pode significar não a benevolência e a complacência, mas uma vida muito exigente para todos os seus cidadãos. Em suma, na comparação entre poder discricionário e poder legal, os resultados são eventualmente o inverso do que um certo senso comum poderia esperar. Por quê? Simplesmente porque o império da lei, se visa à liberdade, pode não prescindir da atenção, engajamento e esforço de todos na sua preservação. Desatenção, desengajamento etc, lembram uma situação menos exigente para cada cidadão na tarefa de zelar por um bem comunitário tão fluido como a liberdade; contudo, justamente dela emergem as possibilidades da submissão, sutil ou escancarada, do conjunto a uma parte ou do conjunto a um só, para ficar em duas variantes do regime senhorial.

III- Participação e democracia

Há um velho debate na tradição, e que retorna de tempos em tempos, sobre o valor da participação no republicanismo. Sem dúvida, o conceito de “cidadão”, tão fundamental nessa vertente, não pode ser entendido sem a idéia de participar dos destinos da “cidade” (a república). Contudo, o debate envolve a questão de saber se essa idéia (a participação) é o valor mais alto, digno por si mesmo e intrínseco à liberdade, ou se é um valor subordinado a ela e portanto instrumental. A questão pode soar abstrata demais, e até irrelevante em termos práticos. É possível, porém, colocá-la de um modo mais instigante e mais abrangente, se a relacionarmos com o tema da democracia.

Ocorre que a questão democrática impõe uma qualificação nesse debate, precisamente porque empresta um certo propósito e conteúdo à participação, ressignificando-a. De fato, se não levarmos em conta essa especificidade, dificilmente poderíamos compreender as clássicas distinções entre as formas de governo — entre oligarquia (o “governo dos poucos”) ou aristocracia (o “governo dos melhores”), de um lado, e democracia (o “governo dos muitos”), de outro — a distinção que, na Antiguidade grega por exemplo, opôs os governos de Atenas e Esparta. Pois em ambos vamos encontrar uma grande ênfase na participação de seus respectivos cidadãos. A diferença está em outro lugar, vale dizer, no que cada cidade entendia por “cidadão” — fundamentalmente na sua abrangência social. Enquanto a participação espartana, embora enfática e muito exigente, se limitava a um âmbito bastante restrito dos diversos grupos sociais da cidade, basicamente os membros das famílias de escol, a ateniense se estendia também aos estratos mais baixos (e pobres) da população, mesmo que os escravos e as mulheres dela fossem excluídos. Esses níveis distintos de abrangência ocasionavam diferenças importantes nas práticas políticas, inclusive nos procedimentos e modos institucionais em que a participação ganhava forma: o funcionamento das assembléias e colegiados, os modos de selecionar os magistrados, seus respectivos poderes etc.

Não cabe discutir os detalhes históricos desse ponto. Importa extrair seu significado mais geral para a relação República — Participação — Democracia. Um modo de fazê-lo é introduzir o “critério de inclusão”, tal como o faz o cientista político Robert Dahl (1989) ao refletir sobre a natureza do governo democrático: “o demos deve incluir todos os adultos sujeitos às decisões coletivas obrigatórias da associação” (p.120). Como se vê, o autor vincula a participação a um direito que é a contrapartida do fato de as decisões de um governo afetarem a todos os membros de uma comunidade. Nessa medida, os afetados têm o direito de exercer influência sobre o governo, isto é, participar de alguma forma na tomada de decisões. Como a inclusão democrática necessariamente tem um impacto na extensão dos participantes, essa exigência vai afetar também as formas de participação. Isso, como dissemos acima, já era visível na experiência clássica grega, porém se tornará mais claro ainda com a experiência de democratização dos Estados nacionais modernos. Nesse segundo caso, o que temos não é apenas o reconhecimento do direito de participar numa escala inédita — em termos demográficos e territoriais –, causando deslocamentos nos canais tradicionais de participação e a invenção de novos. Mais crucial para a nossa discussão aqui, porém, é a mudança qualitativa do sentido da participação, por conta do ingresso de novos grupos e classes sociais na arena política, bastante heterogêneos entre si e, dessa vez, sem mesmo as restrições que as clivagens escravista e sexista impunham às democracias antigas.

Vale destacar duas observações que ilustram bem a mudança a que me refiro:

(1) O problema do conflito social. Ao se ampliar o conteúdo social da cidadania, as instituições e a própria reflexão política vão dar uma guinada no modo de pensar e lidar com o conflito social. Não é que antes houvesse uma absoluta desatenção para esse problema. Porém, ele aparecia através de uma visão predominante que cultivava o ideal da harmonia e da concórdia social, que acabava enquadrando o conflito no registro da patologia, como ameaça de decomposição da vida comunitária, que por isso mesmo precisaria ser extirpado ou tornado residual. A inclusão democrática, porém, torna a heterogeneidade e a discórdia social inerentes ao corpo da cidadania, obrigando ao reconhecimento do caráter essencialmente conflitivo da política. Não poucos pensadores modernos, inspirados em ideais democráticos, passarão a rejeitar a idéia da natureza unilateralmente deletéria do conflito e, ao contrário, se inclinarão a destacar também suas tendências benéficas e produtivas. Isso terá seus efeitos na própria construção institucional, dando lugar a práticas que constituem e expõem o conflito, com a visão de que tais práticas revitalizam, em vez de degradar, o sentido comunitário.

Ao mesmo tempo, o que não deixa de ser paradoxal, a inédita relevância do conflito traz consigo a intensificação de uma angústia: em que consistiria a unidade da sociedade? por onde ela passaria? O conflito, evidentemente, destaca a ausência de unidade, o que pode sugerir algo negativo. Respondendo a essa angústia, porém, o pensamento democrático o fará de modo reconciliador e através de pelo menos dois tipos distintos. O primeiro dá ênfase aos procedimentos das arenas de conflito, entendendo-os como regras de um jogo competitivo de resultados abertos e incertos. Nesse caso, importaria menos o conteúdo desses resultados do que o modo como o jogo é feito: se as regras são justas ou aceitáveis, se efetivamente consentidas por todos os jogadores etc. Isso é o que costuma ser chamado de “resposta liberal”. O conflito se reconcilia com a unidade social na medida em que essa última é, de certa maneira, dessubstancializada e projetada na própria mediação do conflito, na suposição de um lugar neutro ou imparcial (as regras do jogo) que garanta aceitabilidade aos resultados.

Um outro tipo de resposta, geralmente compreendida no registro do “socialismo”, é entender o conflito social como uma espécie de motor da sociedade, positivo exatamente porque capaz de transportá-la para um novo patamar de unidade, qualitativamente superior e por isso mesmo mais aceitável a todos. Dessa vez, a reconciliação de conflito e unidade social é projetada não nas regras de mediação de um jogo competitivo, mas no tempo histórico, no dom que o próprio conflito teria de se aproximar de um futuro com novas e cada vez mais efetivas unificações.

(2) A sociedade democrática. Esse tópico é certamente complementar ao anterior, apenas destacando sua outra faceta: a “igualdade de condições” ou “de status” idealizada pela inclusão democrática. Aqui, os termos escolhidos remetem à abordagem tocquevilleana: trata-se de entender a democracia não apenas como um regime político, uma forma de governo, mas como um tipo de sociedade. Isto é, a sociedade que, rejeitando de princípio qualquer hierarquia fixa e naturalizada de grupos sociais, está em perene desconforto com sua própria desigualdade real. E suas respostas a esse desconforto são projeções de esquemas institucionais e sociais que atenuem ou superem essa desigualdade, seja projetando (como no liberalismo) uma sociedade cujos grupos estão em perpétua alternância de posições — uma estratificação dinâmica, em vez de fixa –, seja projetando o fim da própria idéia de estratificação (como no socialismo). Para além dessas diferenças tradicionais da política moderna, cabe reiterar a compreensão mais fundamental de Tocqueville: a sociedade democrática como uma entidade em luta com seu próprio desnivelamento — é isso o que significa, no fundo, reconhecer a igualdade de status — cuja qualidade mutável faz com que a busca pela igualdade real esteja sempre sujeita a redefinição, uma vez que o desnivelamento passe de um aspecto da vida social para outro. E é assim que a busca por igualdade e o conflito acabam por se implicar e retroalimentar.

Por que esses pontos afetariam nossas compreensões da participação e da república? Se admitimos o caráter inapelavelmente conflitivo da política, é claro que deve mudar a percepção de como se dão os vínculos entre participação e vida comunitária. Porque uma coisa é o compromisso de cada cidadão numa associação política cuja comunidade é pensada como um bloco social mais ou menos uniforme: dele se pode ao menos imputar a expectativa de um espírito cooperativo, desprendido e dedicado ao bem comum, os atributos que a tradição usualmente entende como o grande pilar da república. Outra, bem diferente, é a expecativa de conduta do cidadão numa associação política interposta numa fratura social, a qual põe continuamente em questão a idéia de um bem comum, tornando-o um tema no mínimo mais polêmico ou elusivo. Esse cidadão se verá como parte dessa fratura e, portanto, não poderá conceber sua participação como uma questão de cooperar, sem maiores qualificações, com o todo comunitário. Ele terá de situar seu compromisso num registro adversarial e, só através dele e depois de muitas mediações, alcançar um entendimento de sua participação como uma contribuição ao todo. Para ficar em perguntas já clássicas da vida democrática: participar do governo ou da oposição? participar segundo qual ponto de vista num contexto de divergência? participar de que partido? em defesa de que opiniões, ideologias ou interesses entre os muitos que podem clivar uma sociedade?

Qualquer que seja a resposta, é evidente que a cidadania e a república, nesse contexto, ainda que sejam uma questão de participar, é mais do que um simples problema de ter vontade ou não, ou de perceber ou não o valor de participar. Não se trata aqui de rejeitar de chofre o bem intrínseco da participação — a discussão mencionada no início desta seção –, uma suposição bastante defensável, mas de adensá-la com outros propósitos, tão importantes quanto esse. Tal observação soa ainda mais pertinente se também admitirmos em nossas conjecturas a idéia da sociedade democrática, e então supusermos que um cidadão pode modular sua participação segundo os divergentes pontos de vista e propósitos que pode adotar quando colocado diante da matéria da igualdade/desigualdade social.

Contudo, seria ainda pertinente considerar a questão da república e da participação fora ou para além desse enquadramento democrático? A pergunta faz sentido se levarmos a sério algumas velhas objeções quanto aos efeitos da democracia sobre a qualidade da ação política. Levar a sério, evidentemente, não significa aceitá-las, mas dar-lhes o devido peso e atenção. Poderíamos sintetizar as críticas da seguinte maneira. Por um lado, a inclusão democrática leva à massificação da política: embora a participação cresça em termos quantitativos, ela pode diminuir muito em termos qualitativos. Como essa participação tem um efeito considerável no processo decisório, há um grande risco de que sua baixa qualidade repercuta também na qualidade do governo e dos governantes. Por outro lado, embora a inclusão possa constituir uma força de resistência considerável ao advento de regimes abertamente autoritários ou despóticos, seu efeito massificador, ao combinar-se perversamente com o igualitarismo da sociedade democrática, traz a possibilidade de formas novas e mais sutis de despotismo. Sutis, exatamente porque não impostas pela força, mas como resultado do próprio consentimento do cidadão comum, submetido a processos de alienação que o fazem despreocupar-se das grandes questões políticas, e de anestesiamento de sua capacidade de contestar.

Essas considerações, que na obra clássica de Tocqueville aparecem não como objeção mas como dúvida ou receio , foram desenvolvidas e refinadas tanto pelo pensamento conservador como pelo pensamento de esquerda, este último certamente articulando a crítica da democracia com a crítica do capitalismo. Guardadas as devidas distâncias que mantêm entre si, é possível perceber nas objeções de ambos aquela sensibilidade republicana, aqui já exposta, a respeito da liberdade. No fundo, os alertas quanto à massificação da política democrática lembram os tópicos da dominação e da condição “obnóxia” elaborados pelo republicanismo. Seu peso no debate contemporâneo, convenientemente resgatado por correntes tão distintas como as mencionadas acima, não deixa de repercutir essas afinidades.

A tradição como um todo, porém, não é necessariamente adversária da inclusão. Na era moderna, a preocupação com a liberdade, que devemos ao republicanismo, foi o modo inaugural de colocar na pauta dos embates políticos a questão democrática. É verdade que essa tradição, contraditoriamente, também fomentou um discurso não-democrático: pode-se mesmo falar, como sustentamos em outro lugar (Araujo, 2006), de duas vertentes no seu interior, uma de teor plebeu e outra, aristocrática. Mas o que há de comum nelas é a idéia de que participar implica um compromisso muito exigente do cidadão com a vida pública — com suas leis, com suas tradições, com sua defesa, inclusive militar –, ainda que seu ambiente interno seja adversarial. É essa exigência forte que acaba por remeter ao problema da qualidade da participação — a sua “excelência”. Isso significa que a república não é apenas um arranjo institucional. Ela é também uma certa disposição para ser ou fazer, à qual a tradição deu o nome de “virtude”. A reflexão republicana é, nesse sentido, uma exploração no âmbito da subjetividade: ser cidadão não implica apenas uma condição jurídica — um conjunto de direitos e deveres — mas também certas qualidades de caráter, isto é, aquelas qualidades subjetivas apropriadas à preservação da liberdade e do império da lei. Assim, para que a república “funcione”, não basta que tenha as regras e instituições certas: é preciso que tenha também cidadãos com as disposições certas. Esse aspecto da questão adquire maior relevância ainda quando introduzimos o problema do conflito, pois é aí que o compromisso com a república atinge seu ponto mais dramático e difícil e, todavia, permanece como uma exigência decisiva.

A qualidade e o compromisso são tópicos que ressoam nas críticas aos efeitos da ampliação da cidadania. Só que a versão aristocrática as entende como uma prova de que a democracia é antitética à liberdade. A versão plebéia, porém, só precisa tomá-las como uma advertência de que uma sociedade democrática, como algo distinto de um regime político, carrega dentro de si diversas possibilidades históricas, inclusive a que nega a liberdade. Trata-se de estar ciente dos riscos da jornada, mas não de rejeitar a própria jornada.

Referências bibliográficas

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Quais são as relações dos conceitos de democracia e república com o de cidadania?

São conceitos complementares: só há realização plena da cidadania no governo democrático e, por outro lado, é o exercício da cidadania que sustenta, garante a democracia. Quando o governo é de todos e para todos, democracia e cidadania se complementam.

Quais são as relações entre democracia cidadania e direitos humanos?

Os direitos humanos, numa democracia com cidadania, são garantidos pela sua Constituição, em que se afirma: "Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Qual a relação entre democracia e cidadania Brainly?

Resposta verificada por especialistas A relação entre Democracia e Cidadania é estreita, pois uma depende da outra para existir, não se considera possível que um cidadão possa exercer seus direitos livremente, quando não está inserido em um ambiente democrático, ou seja, uma ditadura.

Qual é o conceito de democracia e cidadania?

A democracia, em linhas gerais, é o exercício do poder político por parte do povo. Outra palavra que acompanha a democracia, desde a sua origem, é a palavra cidadania, que significa, em geral, a condição daquele que toma parte da cidade, com seus direitos e obrigações previstos pela constituição.