Quando a ferida do próximo não te causa dor?

O contato com os outros permite trocas de sentimentos, ajuda mútua, aprendizados e, às vezes, até desconforto. Impossível ficar próximo somente de quem é uma agradável presença.

A companhia é necessária, mas nem sempre é possível selecionar.

Em algumas situações, conviver com os diferentes exige abnegação, paciência e perdão.

Por outro lado, em muitos momentos o tempo não deveria passar, os ponteiros do relógio deveriam simplesmente parar.

O que se passa com a outra pessoa acaba influenciando ou deixando marcas. Quem reserva um tempo e desenvolve a capacidade de escuta, acaba descobrindo as diferentes facetas do amor e da dor.

Quanto sofrimento disseminado em frágeis corações. Impossível ficar indiferente.

Basta ter um pouco de sensibilidade para sentir ou imaginar a dor que o outro está sentindo e desejar fazer algo para amenizar o sofrimento.

A solidariedade é uma atitude maravilhosa. Em determinadas situações é praticamente impossível fazer algo, mas o simples fato de estar presente, dar um abraço e permanecer por perto já é um grande alívio.

Tem dores incuráveis, mas que se tornam suportáveis pela presença silenciosa, pelo olhar compadecido, pela disponibilidade que criativamente age. Ficar indiferente é por si só, um sintoma, um alerta de que algo não está bem.

Quem não se importa com as feridas dos outros se encontra em grave situação, deixou a alma adoecer. Não há necessidade de assumir a dor alheia, mas nem ficar distante, como um mero estranho.

A vida adquire sentido quando o cuidado mútuo tem a tonalidade daquele amor que cura todas as enfermidades. 

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Alguns tipos de dores psíquicas nunca se encerram completamente e mesmo quando dizem que "vai passar" é importante entender que isso não irá acontecer de maneira íntegra. "Nossas vivências doloridas podem se tornar feridas abertas por um tempo curto ou indefinido ou ainda virar cicatrizes que farão parte de quem somos", diz Simone Peixoto Conejo, doutora em psicologia social pela PUCSP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e que também atua no Campus Lagoa do Sino da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

Assim como um corte físico pode formar uma ferida que mesmo sendo tratada mantenha uma cicatriz, as dores psicológicas também podem deixar marcas. E existem diversas situações que geram uma ferida emocional com elevado impacto, podendo provocar uma dor que irá acompanhar um indivíduo por toda a vida.

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Felizmente há solução. Para a psicóloga Daiane Oliveira Hausen, mestranda da gerontologia biomédica da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), sempre existe a possibilidade de desenvolver recursos e estratégias adaptativas para dar conta dessa ferida aberta.

Feridas que podem não fechar

Há uma lista de situações que podem trazer prejuízo a um indivíduo. Por isso, fica difícil generalizar e mensurar o sofrimento. "As feridas emocionais são muito singulares, subjetivas e individuais", afirma Hausen. Diante de relações e investimentos afetivos tão díspares fica difícil enumerar as feridas que doem mais. Mas, é possível indicar algumas delas que, em geral, irão deixar marcas profundas.

  • Morte de um ente querido
  • Diagnóstico de uma doença crônica
  • Vícios
  • Traição
  • Lesão física permanente
  • Estupro
  • Relacionamento abusivo
  • Violência em geral

Quando a ferida do próximo não te causa dor?

Imagem: iStock

Segundo Conejo, é importante reforçar que não há uma regra de que qualquer pessoa que passe por situações que envolvem lutos, perdas e frustrações estará sentenciada a sofrimentos sem fim, com poucos espaços de transformações. "As pessoas podem lidar com as situações usando modos muito diversificados, mesmo diante de vivências similares", afirma.

Portanto, não há como apontar com precisão quais feridas são incuráveis. "Independentemente de uma lista com situações que carregam um potencial de sofrimento, é essencial focar na ideia de que quem está sofrendo deve receber cuidados, nos colocando em compromisso com as pessoas no momento em que isso se faz necessário", avalia a especialista.

De acordo com ela, as dores fazem parte da vida e reconhecer o que nos afeta se torna importante para a nossa constituição. "Cada vez mais problematizamos os acontecimentos e deixamos de cuidar das emoções e necessidades humanas que os acompanham", alerta.

Cuidado com falsas promessas

A promessa de que o tempo é capaz de curar tudo nem sempre é um bom antídoto, pois pode gerar ainda mais sofrimento psíquico. Afinal, não existe uma garantia real de que o tempo melhore aquela dor; muitas vezes, apenas ameniza. A pessoa acaba sendo estimulada a superar, deixando o que a incomoda de canto. E isso não significa que o problema deixou de existir ou que não esteja doendo. "O tempo pode auxiliar, mas situações traumáticas irão transcende-lo, a memória continua existindo e gerando sofrimento", alerta Hausen.

De acordo com a psicanalista Christiane Matozinho, doutoranda do Departamento de Psicologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), há um imperativo de felicidade que obtura a possibilidade de o sujeito tomar posse de suas próprias perdas. "Negar essa ferida aberta é um movimento perigoso, pois cada vez mais há uma tentativa de encurtar o tempo de elaboração para que a pessoa consiga responder mais rapidamente a um ideal social de felicidade e produtividade", acrescenta.

Por isso, banalizar a dor não só ilude como também atrapalha o processo de elaboração. A promessa de que o tempo cura tudo é prejudicial, pois priva o indivíduo de um trabalho que só ele pode fazer sobre o que perdeu e como simbolizar isso, para conseguir recuperar e reinvestir em novas situações.

Quando a ferida do próximo não te causa dor?

Imagem: iStock

Dicas para enfrentar essa dor

Não há uma receita pronta e unânime para tratar as dores de cada um. Porém, algumas ações podem ajudar nessa tarefa, segundo Hausen.

Autoconhecimento: reconheça que há uma ferida não curada machucando você. Aceite que isso realmente aconteceu, que existe uma dor que não cessa, e a partir disso tente buscar auxílio.

Auxílio psicológico: contribui para que as dores emocionais sejam ressignificadas, quando tratadas, acolhidas e cuidadas. Todo mundo que passou por uma situação difícil, traumática ou não, merece cuidado e respeito diante de sua dor.

Autocuidado: cuide de si mesmo e de suas dores, respeitando seu tempo. Dê a devida importância aos seus sentimentos, sem medo de julgamento.

Torne a dor um propósito: construir grupos de ajuda, trabalhos voluntários, muitas vezes, transforma a dor, possibilitando sua validação e auxiliando outras pessoas que passaram por situações semelhantes a terem um acolhimento. Isso promove um senso compartilhado de empatia, que traz uma perspectiva positiva para o sofrimento.

Terapia em grupo: possibilita um acolhimento mútuo e troca entre os participantes. As pessoas se sentem pertencentes, afastando o medo de se mostrar e lidando com a vergonha e a culpa que só contribuem para manter a ferida aberta.