O que é o bem comum para Aristóteles?

Lucas Vilela Gonçalves [1]

A ideia do Bem em Aristóteles

A discussão sobre a Ideia do Bem é bastante recorrente na filosofia grega e encontra grande importância em dois dos maiores filósofos do período, Platão e Aristóteles, sendo que esses dois expoentes apresentam essa temática de modos diferentes. Nesse primeiro momento, o foco estará apenas na descrição aristotélica dessa teoria, diferentemente de seu mestre, que apresentava a ideia do bem como “a mais elevada das ciências” (PLATÃO, A república, VI, 505a), a partir do mundo inteligível. Aristóteles ao escrever sobre à ideia do Bem irá, sob alguns aspectos, descrevê-la em consonância com Platão, mas em outros pontos os mesmos irão divergir sobre essa teoria.

Por existir tais diferenças somos inicialmente levados a crer que os pensadores divergem totalmente sobre essa teoria, entretanto existem pontos em que Aristóteles concorda com seu mestre, os quais se dá pela compreensão do Bem como sendo o primeiro princípio, ou em outras palavras, como o ser mais elevado ou então o bem absoluto. A partir dessa definição o Estagirita apresenta o Bem como um predicado da substância, como encontramos na seguinte citação:

Mas o bem é predicado igualmente nas categorias de substância, de qualidade e de relação. O absoluto, ou substância, é anterior naturalmente à relação […] de maneira que não é possível haver uma Ideia comum correspondente aos bens. Ademais, observa-se o uso da palavra bom em tantos sentidos quanto a palavra é […]. Está claro que não é possível que o bem seja algo comum, uno e sua predicação universal, pois nesse caso não seria predicável em todas as categorias, restringindo-se a uma apenas (ARISTÓTELES, EN[1], I, 1, 1096a, 18-29).       

Com tais palavras é possível compreendermos um pouco da analogia que o Estagirita faz da ideia do Bem com as categorias descritas por ele na Metafísica, na qual o nosso filósofo demonstra que o Bem está presente em todas as categorias e não apenas em uma, se assim fosse, teríamos que afirmar o Bem como sendo único, fator que não é encontrado na filosofia do Estagirita. Aristóteles para fortalecer seu argumento equipara os termos Bem e Ser e afirma que este último está presente de forma igualitária em todas as categorias, para assim fortalecer a ideia de que o Bem se encontra em ambas categorias. A partir disso, o Estagirita chega a duas constatações a respeito dessa ideia: na primeira delas ele afirma que se o Bem pode ser considerado como uma categoria da substância, ele está então presente no modo de agir do homem de modo inseparável, sendo assim o homem tem por meta de toda sua ação o Bem.

A segunda constatação parte da observação de que se pode encontrar o Bem de um modo singular em cada pessoa e de igual modo na cidade. Vale ressaltar que em ambos os casos se trata do mesmo Bem, entretanto o Bem praticado na cidade é considerado mais nobre pelo Estagirita, sendo assim, dentro da teoria aristotélica sobre o bem, podemos afirmar que o Bem praticado na cidade é mais virtuoso do que no indivíduo, tal constatação é assim afirmada pelo nosso filosofo em sua obra:

Sua finalidade terá que incluir as finalidades de todas as demais. Determina-se, com isso, ser o bem humano a sua finalidade, pois a despeito de o bem ser idêntico para o indivíduo e para o Estado, o do Estado é visivelmente maior e mais perfeito, seja a título de meta, seja como objeto de preservação. Assegurar o bem de um indivíduo apenas é algo desejável; porém, assegura-lo para uma nação ou um Estado é uma realização mais nobre e mais divina (ARISTÓTELES, EN, I, 2, 1094b, 6-12).

Mas por que Aristóteles afirma que o bem praticado na cidade é superior ao bem no indivíduo? Uma possível resposta está na compreensão aristotélica do ser humano como zoon politicon, ou seja, um animal político. Com esse termo Aristóteles afirma que o homem é um ser aberto para relações pessoais e não individualista, sendo assim o bem praticado na cidade se torna mais nobre porque atinge toda a sociedade com a qual o homem se relaciona e desenvolve toda sua potencialidade, seja ela racional, prática, etc.

Em sua obra Ética a Nicômaco, Aristóteles traz ainda a constatação de que o Bem pode também ser considerado como sendo o fim último para o qual o homem dirige suas ações. Logo nas primeiras linhas da obra ele afirma: “Toda arte, toda investigação e igualmente toda ação e projeto previamente deliberado parecem objetivar algum bem. Por isso se tem dito, com razão, ser o bem a finalidade de todas as coisas” (ARISTÓTELES, EN, I, 1, 1094a, 1-3). Sendo assim pode-se dizer que em todas as suas ações o homem busca atingir a sua meta: o bem.

Nesse sentido, percebe-se certa relação que o Estagirita faz da ideia do Bem com a temática da eudaimonia, que para o nosso filósofo é o fim último do homem, o qual pode ser compreendido como felicidade. Sob esse ponto de vista então, pode-se fazer uma relação entre a ideia do Bem e a felicidade, que na nossa interpretação podem ser consideradas pelo menos semelhantes.

Ainda discorrendo sobre a citação trazida acima, a partir da afirmação de Aristóteles de que o Bem é o fim para o qual todas as coisas se dirigem, pode-se compreender esse Bem de duas maneiras:

Aristóteles indica que há dois tipos de fim para a ação: o telos (fim) por ser, ele próprio, uma energeia (atividades, activitas, como no agir ético, mas também em atividades como tocar flauta) ou pode ser o ergon (obra, resultado, produto) de uma ação […] O fato de, em 1094a3-6, Aristóteles colocar em jogo a expressão “fim”, também poderia nos servir de indicação para o significado que se está buscando para a palavra “bem” (bom) na passagem inicial (WOLF, 2010, p.23).

 Dando sequência a essa reflexão, Wolf aponta dois modos que Aristóteles traz o termo “Bem”, o qual surge em um primeiro momento como sendo apenas um bem, e em um segundo momento o nosso filósofo associa a esse bem a ideia de fim, e assim sendo “a expressão ‘um bem’ deveria indicar o fim de cada ação ou o objeto de uma aspiração” (WOLF, 2010, p.23).

A relação existente entre o Bem e a eudaimonia também é abordada pelo nosso filósofo em sua obra Ética a Nicômaco, conforme vemos na seguinte citação:

No tocante à palavra, é de se afirmar que a maioria esmagadora está de acordo no que tange a isso, pois tanto a multidão quanto as pessoas refinadas a ela se referem como a felicidade, identificando o viver bem […]com o ser feliz. Mas quanto ao que é a felicidade a matéria é polêmica, e o que entende por ela a multidão não corresponde ao entendimento do sábio e sua avaliação (ARISTÓTELES, I, 4, 1095a, 18-21).

Sendo assim, ao se relacionar o bem com a felicidade temos por consequência a uma afirmação de que para que se possa ser feliz deve-se buscar viver bem e basear nossas ações nas coisas que de fato são boas. Nesse sentido podemos afirmar que o Bem é um fator necessário para que o homem alcance a felicidade.

Essa relação ao que apresentamos entre a ideia do bem e a eudaimonia, comumente entendida como felicidade, fica mais clara ao analisarmos este termo pelo seu significado real a partir do momento que notamos a tradução dos radicais que a compõe. Conforme apresenta Wolf: “A explicação que Aristóteles apresenta logo a seguir esclarece o significado de eudaimonia. Trata-se, segundo ele, do eu zen kai prattein […], o ‘viver bem e agir bem’” (2010, p.28).

A partir dessa exposição, podemos perceber que o “ser”, e por analogia “a ideia do Bem”, pode ser dito e entendido de diferentes maneiras na filosofia aristotélica, porém isso só é possível se houver um parâmetro de unidade e uma realidade determinada. Para que tais pré-requisitos possam existir, o nosso filósofo afirma que deve também haver uma ciência que garanta tal unidade, a qual se deu o nome de ética, conforme podemos notar na citação seguinte:

[…] pode-se afirmar que o Bem se diz de vários modos, assim como o ser também se diz de vários modos. No entanto, é preciso estar atento, pois, a modo aristotélico, o ser se diz de vários modos, “mas sempre em referência a uma unidade e a uma realidade determinada”. Neste sentido, em relação ao Bem, qual seria o ponto de unidade? Ora, para afirmar tal unidade não seria necessário recorrer também a uma ciência “arquitetônica” que comanda todas as outras ciências? Esta “arquitetônica” sugere o entendimento da ética como filosofia primeira” (MELO, 2018, p.106).

Se há uma ligação entre a ideia do Bem com a ética, é possível também entender uma ligação entre ética e metafisica. Ambas as ciências podem ser consideradas como responsáveis por garantir essa “arquitetura” de unidade a partir da ideia do Bem.

Em síntese, podemos afirmar que em Aristóteles todas as ações humanas são determinadas por uma reta razão e de igual modo por virtudes metafísicas e práticas, visto que a ideia do Bem se relaciona com a ética – modo de agir do homem – e também com a metafísica. Essa ligação pode ser notada em resumo quando entendemos a ideia do Bem como sendo predicada do ser, assim se ligando com a metafisica, e enquanto entendemos o Bem como o “fim último” de todas as coisas.

Diferenças entre a tese platônica e a aristotélica

Após ter-se destacado o modo como Aristóteles afirmou a ideia do Bem, partir-se-á nesse momento a destacar as diferenças existentes entre a teoria do Estagirita e a de seu mestre sobre o Bem. Conforme dito no início deste artigo, é possível encontrar pontos em que eles aparentam concordar e em outros nos quais mestre e discípulo estão indo por caminhos diferentes e é sobre estes que buscaremos abordar nesse tópico.

Pelo fato de existir pontos em comum e outros divergentes entre as teorias supracitadas, nota-se uma maior complexidade na temática em questão. Primeiro abordaremos de forma breve os dois pontos encontrados nesta pesquisa em que se pode afirmar certa proximidade entre as teorias aristotélica e platônica.

A primeira delas, já abordada no início do primeiro tópico, diz que “o Bem parece não ser diferente do próprio ‘ser’, a ponto de se poder afirmar que o primeiro princípio é tanto o ser mais elevado quanto o bem absoluto” (MELO, 2018, p.105), e a segunda afirmação aristotélica a qual diz que o Bem é um princípio absoluto.

Por outro lado, é possível encontrar outros pontos, nos quais eles divergem sobre a ideia do Bem. Para compreendê-los faz-se necessário recordar que o foco de Platão em sua filosofia está no que ele chamou de “mundo inteligível” ou “mundo das ideias” e já o foco aristotélico se encontra no “mundo sensível” – em sua filosofia prática, fator que certamente influenciou nas diferenças que abordaremos a seguir.

Para Platão o Bem está “além” ou separado da essência, enquanto em Aristóteles o Bem é uma categoria da substância, ao menos no que diz respeito à filosofia teorética, visto que em sua filosofia prática há uma outra interpretação. Um outro fator de divergência encontrado é assim descrito por D. S. Hutchinson (2015, p. 262-263):

Aristóteles concentra-se naquilo que os homens são capazes de alcançar, e uma coisa abstrata como a Ideia do Bem não é algo que podemos alcançar. Mas um conhecimento da Ideia do Bem não nos ajudaria a compreender que bens são dignos de ser alcançados? […] Os bens que são relevantes para a investigação de Aristóteles são os objetivos perseguidos pela ‘política’, ‘economia’ e ‘sabedoria’, as habilidades deliberativas exigidas de um homem que deve ser responsável por uma comunidade política, uma casa, ou si mesmo.

A partir dessa citação acima é possível notar que, enquanto em Platão a Ideia do Bem está no mundo inteligível (ou mundo das ideias), mas com implicações do mesmo na vida prática da polis, em Aristóteles o Bem encontra-se no mundo sensível, “imanente” no agir humano. Sendo assim, em síntese, podemos afirmar a diferença entre as teorias platônica e aristotélica sobre a Ideia do Bem, a partir da afirmação aristotélica de que o bem não possui um lugar privilegiado e pela teoria do nosso filósofo de que não é possível afirmar a existência de uma forma única do bem para todas as coisas existentes.

CONCLUSÃO

A partir dos argumentos supracitados, nota-se que a ideia do Bem em Aristóteles e em Platão tem pontos concordante e divergentes. Como vimos, para o Estagirita o Bem pode ser considerado de duas maneiras principais, a primeira, que se relaciona com a metafísica, sendo considerado como um predicado do ser, motivo pelo qual ele não é apontado como único fim para todas as coisas. Uma segunda maneira, permite associar a ideia aristotélica do Bem com a ética, na qual o Bem é interpretado como finalidade, ou seja, com o fim para o qual todas as coisas tendem. Neste sentido, é também possível destacar pontos em que Aristóteles tende a concordar com seu mestre e outros nos quais eles se divergem. Dentre os pontos em comum, pode-se destacar, a afirmação de que o Bem pode ser compreendido como o Bem absoluto ou como o “primeiro princípio”. E entre os aspectos em que eles se divergem nessa teoria, pode-se destacar o fato de que Aristóteles não afirma a existência de um local privilegiado para o Bem e também que o Bem não está no mundo transcendental, ou das Ideias, ou ainda no mundo meramente inteligível.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Edson Bini. 4ª Edição. São Paulo: Edipro, 2014.

HUTCHINSON, D. S. Ética. In: BAARNES, Jonathan (org.) Aristóteles. São Paulo: Ideias e Letras, 2015, p. 255-298.

MELO, Edvaldo Antônio de. Por uma sensibilidade além da essência: Lévinas interpela Platão. Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 2018.

PAVIANI, Jaime. A ideia do bem em Platão. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n.1 p. 75-77, jan./abr. 2002. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/viewFile/1527/989>. Acesso em: 20 ago. 2019.

PLATÃO. A república. Tradução Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999;

WOLF, Ursula. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. Tradução Enio Paulo Giachini. São Paulo Loyola, 2010.


[1] EN = Ética a Nicômaco.


[1] Graduando em Filosofia pela Faculdade Dom Luciano Mendes

O que significa para o bem comum?

Bem comumé uma expressão que possui conceitos em muitas áreas do conhecimento humano, mas que se assemelham entre si. De um modo geral, define os benefícios que podem ser compartilhados por várias pessoas, pertencentes à um determinado grupo ou comunidade.

Qual é o objeto do bem de Aristóteles?

Foi dito que, em geral, a ciência, a filosofia - conforme Aristóteles, bem como segundo Platão - tem como objeto o universal e o necessário; pois não pode haver ciência em torno do individual e do contingente, conhecidos sensivelmente.

O que era o bem comum para Platão?

Na filosofia platônica o "bem-comum é, assim, sempre, o bem máximo de cada ser humano, mas em integração sinfonial como o bem máximo, possível e real, de todos os outros, em acto, em cada instante”, sendo esse o "fundamento metafísico da dimensão política da realidade humana.