Do Getsêmani foi o Cristo cativo e manietado arrastado à presença dos governantes judaicos. Somente João nos informa que o Senhor foi primeiramente levado a Anás, que O mandou, ainda amarrado, a Caifás, o sumo sacerdote;a os sino ticos registram apenas a acusação diante de
Caifás.b Nenhum detalhe da entrevista com Anás foi registrado, e o fato de haver Jesus sido levado diante dele fora, afinal, tão certamente irregular e ilegal, de acordo com a lei hebraica, quanto todos os acontecimentos subseqüentes daquela noite. Anás, que era sogro de Caifás, havia sido deposto da função de sumo sacerdote vinte anos antes,
mas durante todo esse período, havia exercido uma poderosa influência em todos os negócios hierárquicosc Caifás, conforme João cuidadosamente nos recorda, “era quem tinha aconselhado aos judeus que convinha que um homem morresse pelo
povo.”d No palácio de Caifás, os principais dos sacerdotes, escribas, e anciãos do povo juntaram-se numa reunião informal do sinédrio, ou em outros termos, todos ansiosamente esperando o resultado da expedição conduzida por Judas. Quando Jesus, o objeto de seu ódio figadal e vítima predeterminada, foi
introduzido como prisioneiro manietado, foi imediatamente posto em julgamento em desrespeito à lei, tanto escrita quanto tradicional, da qual aqueles governantes judaicos reunidos professavam ser tão zelosos guardiães. Nenhuma audiência legal sobre acusação capital podia ser realizada devidamente senão no tribunal designado e oficial do sinédrio. Entendemos da narrativa do quarto evangelho que o Prisioneiro foi, em primeiro lugar, submetido a interrogatório pelo próprio sumo
sacerdote.e Aquele funcionário, se se tratava de Anás ou de Caifás é uma questão de inferência, inquiriu Jesus a respeito de Seus discípulos e Sua doutrina. Tal inquérito preliminar era completamente ilegal, porquanto o código hebreu determinava que as testemunhas de acusação em qualquer caso proposto ao tribunal, definissem a imputação
contra o citado, e que o último deveria ser protegido contra qualquer esforço de fazê-lo testificar contra si mesmo. A réplica do Senhor deveria ter sido um protesto suficiente ao sumo sacerdote contra novo procedimento ilegal. Declarou-lhe Jesus: “Eu falei abertamente ao mundo; eu sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se ajuntam, e nada disse em oculto. Para que me perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram o que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes tenho
dito.” Tratava-se de uma objeção legal contra o negar-se a um prisioneiro em julgamento o direito de ser confrontado com seus acusadores, mas foi recebida com evidente desprezo, e um dos oficiais próximos, desejoso talvez de granjear favor de seus superiores, lançou a Jesus uma traiçoeira bofetada,f acompanhada da pergunta: “Assim respondes
ao sumo sacerdote?” A esse ataque covarde, o Senhor respondeu com mansidão quase sobre-humana:g “Se falei mal, dá testemunho do mal; e, se bem, por que me feres?” Embora mesclada de submissão, esta resposta constituía mais um apelo aos princípios de justiça; se o que dissera Jesus era errado, por que o atacante não O acusava, e se havia
falado acertadamente, que direito tinha o oficial de polícia de julgar, condenar, e punir, e tudo isso também, na presença do sumo sacerdote? A lei e a justiça haviam sido destronadas naquela noite. “Ora os príncipes dos sacerdotes, e os anciãos, e todo o conselho, buscavam falso testemunho contra Jesus, para poderem dar-Lhe a
morte.”h Se “todo o conselho” significava um quórum legal, que poderiam ser vinte e três ou mais, ou a presença total dos setenta e dois sinedristas, há pouca importância. Qualquer sessão do sinédrio à noite, e mais ainda para considerar uma acusação capital, violava diretamente a lei judaica. De igual modo era ilegal o conselho considerar
tal acusação em dia de sábado, de festa, ou na véspera de qualquer desses dias. No sinédrio, todos os membros eram juízes; o corpo judicial destinava-se a ouvir o testemunho e, de acordo com esse testemunho e nada mais, tomar uma decisão, em cada caso devidamente apresentado. Os acusadores deveriam comparecer pessoalmente, e receber uma advertência preliminar contra a prestação de falso testemunho. Todo aquele que se defendesse, deveria ser considerado e tido como inocente até ser declarado
culpado dentro do devido procedimento. Entretanto, no falso julgamento de Jesus, os juízes não só procuraram testemunhas, mas especificamente tentaram encontrar testemunhas falsas. Embora muitas testemunhas falsas tivessem aparecido, não havia contudo “testemunho” contra o Prisioneiro, porquanto os perjuros subornados não conseguiam chegar a um acordo entre si mesmos; e até os próprios sinedristas sem lei hesitavam em violar abertamente a exigência fundamental de que, pelo menos duas testemunhas
concordantes testificassem contra a pessoa acusada, pois que, de outra forma, o caso deveria ser encerrado. Que Jesus deveria ser condenado por uma acusação ou outra, e morto, já havia sido determinado pelos juízes sacerdotais; seu fracasso em encontrar testemunhas contra Ele, ameaçava delongar a execução de seu nefando plano. Pressa e precipitação caracterizavam o procedimento deles em toda a linha; haviam ilegalmente feito prender Jesus durante a noite;
estavam procedendo ilegalmente a um arremedo de julgamento à noite; seu propósito era condenar o Prisioneiro, em tempo de apresentá-Lo às autoridades romanas tão cedo quanto possível pela manhã — como criminoso devidamente julgado e considerado merecedor de morte. A falta de duas testemunhas hostis, que pudessem dizer as mesmas falsidades, era um sério embaraço. “Mas por fim chegaram duas e disseram: Este disse: Eu posso derrubar o templo de Deus, e reedificá-lo em três dias.” Outros, contudo,
testificavam: “Nós O ouvimos dizer: Eu derrubarei este templo, construído por mãos de homens, e em três dias edificarei outro, não feito por mãos de homens.i E assim, como observa Marcos, até nesse particular seu “testemunho” não concordava. Sem dúvida, num caso em juízo, uma discrepância como a que aparece entre “posso”, e “farei”, como
declarações alegadas do acusado, é de importância vital. Ainda assim, esse fingimento de acusação formal era a única base para uma imputação contra Cristo até àquele ponto do julgamento. Deve-se lembrar que, em conexão com a primeira purificação do templo, perto do início do ministério de Cristo, Ele havia respondido ao pedido clamoroso dos judeus, de um sinal de Sua autoridade, dizendo: “Derrubai este templo, e em três dias o levantarei.” Ele não havia falado absolutamente de Si mesmo como o
destruidor; os judeus deveriam ser os destruidores e Ele o restaurador. Mas o escritor inspirado prontamente explica que Jesus “falava do templo do seu corpo”, e de maneira alguma daqueles edifícios levantados pelo homem.j Poderíamos perguntar, com razão, qual seria a importância que se poderia dar até
mesmo a uma tal declaração, como as testemunhas perjuras afirmavam terem ouvido dos lábios de Cristo. A veneração com que os judeus professavam interessar-se pela Casa Santa, conquanto insolentemente profanassem seus precintos, oferece uma resposta parcial, mas insuficiente. O plano dos governantes conspiradores parece ter sido de condenarem Cristo acusando-O de sedição, fazendo-O parecer um perigoso perturbador da paz nacional, um atacante das instituições estabelecidas, e conseqüentemente, um
incitador de oposição contra a autonomia vassala da nação judaica, e o domínio supremo de Roma. k A sombra, vagamente definida, de uma acusação legal, produzida pelo obscuro e inconsistente depoimento de testemunhas falsas, foi o suficiente para encorajar a iníqua corte. Caifás, levantando-se de seu lugar
para dar ênfase dramática à pergunta, inquiriu a Jesus: “Não respondes coisa alguma ao que estes depõem contra ti?” Nada havia a responder. Nenhum testemunho consistente ou válido havia sido apresentado contra Ele, que, por isso, permaneceu em majestoso silêncio. Então Caifás, violando a proibição legal de exigir de alguém que testificasse em seu próprio caso senão voluntariamente, e de sua livre iniciativa, não somente pediu uma resposta do Prisioneiro, mas também exerceu a potente prerrogativa
de seu ofício de sumo sacerdote, para colocar o acusado sob juramento, como testemunho diante do tribunal sacerdotal. “E, insistindo o sumo sacerdote, disse-Lhe: Conjuro-Te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus.”l O fato de uma especificação distinta de: “o Cristo”, e “o Filho de Deus”, é significativo de que os
judeus esperavam um Messias, mas não reconheciam que fosse distintivamente de origem divina. Nada do que havia acontecido até ali pode ser considerado como fundamento para uma tal pergunta. A acusação de sedição estava para ser superada por outra de maior envergadura — a de blasfêmia.m À conjuração
inteiramente injusta, ainda que oficial, do sumo sacerdote, Jesus respondeu: “Tu o disseste; digo-vos, porém, que vereis em breve o Filho do Homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu.” A expressão “Tu o disseste” era equivalente a “Eu sou o que tu disseste”.n Era uma confissão irrestrita de filiaçao divina e
inerente divindade. “Então o sumo sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: Blasfemou; para que precisamos ainda de testemunhas? Eis que bem ouvistes agora a sua blasfêmia! Que vos parece? E eles, respondendo, disseram: É réu de morte.”o Assim, os juízes em Israel, compreendendo o sumo sacerdote, os
principais sacerdotes, os escribas e anciãos do povo, o Grande Sinédrio ilegalmente reunido, decretaram que o Filho de Deus merecia a morte, baseados na única evidência de Sua própria admissão. Por estatuto expresso, o código judaico vedava a condenação, especificamente em acusação capital, de qualquer pessoa, baseada em Sua própria confissão, a menos que fosse amplamente apoiada por testemunhas dignas de fé. Como no Jardim de Getsêmani Jesus Se havia entregado voluntariamente, da mesma forma
diante dos juízes, Ele forneceu pessoal e voluntariamente, a evidência para que, injustamente, o declarassem réu de morte. Não poderia haver crime na afirmativa de messianismo ou de filiação divina, a menos que fosse falsa. Em vão procuraremos no relato qualquer indício de que tivesse havido inquirição, ou de que isso tivesse sido sugerido, corri relação aos fundamentos sobre os quais Jesus alicerçava Suas exaltadas afirmações. O gesto do sumo sacerdote de rasgar suas vestes era uma afetação
dramática de pio horror ante a blasfêmia com que seus ouvidos haviam sido feridos. Era expressamente proibido na lei que o sumo sacerdote rasgasse suas vestes;p porém, de autores extra-escriturísticos, aprendemos que o rasgar das vestes como atestado da culpa mais nefanda, tal como a de blasfêmia, era permitido por regulamento
tradicional.q Não há indicação de que o voto dos juízes tenha sido recebido e anotado segundo a maneira precisa e ordenada que a lei exigia. Jesus foi considerado culpado da mais abominável ofensa conhecida entre o povo judeu. Embora injustamente, Ele havia sido declarado culpado de blasfêmia pelo supremo
tribunal. Com absoluta precisão não podemos dizer que os sinedristas sentenciaram Cristo à morte, uma vez que o poder de decretar sentenças capitais havia sido tirado do conselho judaico por decreto romano. O tribunal do sumo sacerdote, entretanto, decidira que Jesus era réu de morte, e disso dera ciência ao transferi-Lo a Pilatos. Em seu assomo de ira maligna, os juízes de Israel abandonaram seu Senhor à vontade zombeteira dos criados presentes, que descarregaram sobre Ele todas as indignidades
que seus instintos animalescos poderiam sugerir. Atiraram seu escarro imundo em Sua face,r e tendo-O vendado, divertiram-se em golpeá-lo repetidas vezes, dizendo: “Profetiza-nos, ó Cristo, quem é o que te bateu!” A populaça herética zombava Dele, cercando-O de gracejos e ofensas, e a si própria se estigmatizava como blasfemadores de
fato.s A lei e os costumes da época determinavam que toda pessoa culpada de uma ofensa capital, depois de julgada devidamente ante um tribunal judaico, deveria ser submetida a novo julgamento no dia seguinte, e nessa audiência posterior, qualquer dos juízes, ou mesmo todos os juízes que houvessem votado
pela condenação, poderiam mudar seu voto, mas nenhum dos que tivessem votado pela absolvição poderia alterar sua conduta. A maioria simples era suficiente para absolver, porém mais que isso era exigido para condenar. Uma cláusula que pode parecer-nos extremamente fora de propósito, determinava que, se tòdos os juízes votassem unanimemente pela condenação à pena capital, o veredicto não deveria prevalecer e o acusado teria que ser libertado; porquanto, argumentava-se, um voto unânime contra um
prisioneiro indicava que não tinha tido nenhum amigo ou defensor no tribunal, e que os juízes poderiam ter entrado em conspiração contra ele. De acordo com esta regra da jurisprudência hebraica, o veredicto contra Jesus, proferido naquela sessão noturna e ilegal dos sinedristas, era nulo, pois que nos é dito,especificamente, que “todos o consideraram culpado de
morte”.t Evidenciando o propósito de estabelecer um ilusório arremedo de legalidade em seu procedimento, os sinedristas suspenderam a sessão, para voltarem a se reunir ao nascer do dia. Dessa forma, obedeciam tecnicamente ao preceito de que, em todos os casos em que se houvesse decretado sentença de
morte, o tribunal deveria reinquirir e julgar pela segunda vez em sessão posterior; entretanto, ignoraram completamente a determinação, igualmente indispensável, de que o segundo julgamento fosse realizado no dia seguinte ao da primeira audiência. No intervalo das duas sessões, em dias consecutivos, os juízes deveriam orar e jejuar, dando ao caso em julgamento atenção pausada e séria. Lucas, que não registra detalhes do julgamento noturno de Jesus, é o único
dos evangelistas que dá lugar a um relato circunstancial da sessão matutina. Diz ele: “E logo que foi dia ajuntaram-se os anciãos do povo, e os principais dos sacerdotes e os escribas, e o conduziram ao seu concílio.”u Alguns estudiosos da Bíblia têm interpretado a expressão: “e o conduziram ao seu concílio”, como significando que Jesus
teria sido condenado pelo Sinédrio no lugar de reunião regular daquela corte, ou seja, o Gazith, ou Salão das Pedras Talhadas, conforme a lei da época exigia; mas contra isso temos a afirmativa de João, de que Jesus foi levado diretamente, de Caifás, ao salão romano de audiências.v É provável que nessa
sessão do amanhecer, os procedimentos irregulares das horas noturnas tenham sido aprovados, e decididos os detalhes das ações futuras. Eles “tomaram conselho contra Jesus para o matar”; a despeito disso, passaram pelas formalidades de um segundo julgamento, cuja realização foi grandemente facilitada pelas afirmações voluntárias do Prisioneiro. A posição dos juízes parece inteiramente desprovida de justificativa, ao chamarem o Acusado para testificar, pois que deveriam ter reexaminado os
testemunhos contra Ele. A primeira pergunta a Ele dirigida foi: “Es tu o Cristo? Dize-no-lo.” O Senhor respondeu com dignidade: “Se vo-lo disser, não o crereis; e também, se vos perguntar, não me respondereis, nem me soltareis. Desde agora o Filho do Homem se assentará à direita do poder de Deus.” Nem a pergunta, nem a resposta forneciam motivo para condenação. A nação inteira esperava pelo Messias, e se Jesus afirmava ser O esperado, a única ação judicial consistente seria a de investigar o
mérito da pretensão. A pergunta decisiva seguiu-se, incontinenti: “Logo, és tu o Filho de Deus? E ele lhes disse: Vós dizeis que eu sou. Então disseram: De que mais testemunho necessitamos? pois nós mesmos o ouvimos da sua boca.”w Jeová era acusado de blasfemar contra Jeová. O único Ser mortal, ao qual o terrível crime de blasfêmia por proclamar a posse de atributos e poderes divinos, era impossível, ali estava diante dos juízes de Israel, condenado como blasfemo. O “conselho todo”, e por esta expressão podemos compreender um quórum legal, estava envolvido na ação derradeira. Desse modo, terminou o que impropriamente se chamou de “julgamento” de Jesus diante do sumo sacerdote e anciãosx do seu povo. “E, logo ao amanhecer, os principais dos sacerdotes, com os anciãos, e os escribas, e todo o Sinédrio, tiveram conselho; e, ligando Jesus, O levaram e entregaram a Pilatos”.y Durante as poucas horas que Lhe restavam na mortalidade, estaria Ele nas mãos dos gentios, traído e entregue pelos Seus.z Pedro Nega o Seu SenhoraQuando Jesus fora preso no Jardim de Getsêmani, todos os onze O haviam deixado e fugido. Isto não deve ser tomado como evidência certa de covardia, porquanto o Senhor havia indicado que deveriam ir.b Pedro, e pelo menos um outro discípulo, seguiam de longe, e depois que a guarda armada havia entrado no palácio do sumo sacerdote com o Prisioneiro, Pedro “entrando, assentou-se entre os criados, para ver o fim”. Ele havia sido ajudado, para entrar, pelo discípulo cujo nome não é fornecido, e que era conhecido do sumo sacerdote. Aquele outro discípulo era, com toda probabilidade, João, conforme se pode concluir do fato de ser mencionado somente no quarto evangelho, cujo autor se refere a si próprio, caracteristicamente, sem citar o nome.c Enquanto Jesus permanecia diante dos sinedristas, Pedro estava embaixo, com os servos. A porteira era uma jovem, cujas suspeitas femininas se haviam aguçado, quando permitira a entrada a Pedro, e no momento em que ele se assentava com a multidão no pátio do palácio, ela apareceu, e havendo-o observado atentamente, disse: “Tu também estavas com Jesus, o galileu”. Contudo, Pedro o negou, afiançando que não conhecia a Jesus. Pedro estava inquieto, tanto sua consciência quanto o temor de ser identificado como um dos discípulos do Senhor, o perturbavam. Afastou-se da multidão e buscou parcial isolamento no vestíbulo; mas outra serva o viu e disse aos circunstantes: “Este também estava com Jesus, o nazareno”, ao que Pedro retrucou com um juramento: “Não conheço tal homem.” A noite de abril estava fria, e um fogo havia sido aceso no vestíbulo ou pátio do palácio. Pedro assentara-se com outras pessoas ao redor do fogo, imaginando talvez que expor-se abertamente seria melhor que uma dissimulada precaução, como possível salvaguarda contra o reconhecimento. Cerca de uma hora depois de suas primeiras negativas, alguns dos homens ao redor do fogo o acusaram de ser discípulo de Jesus, e fizeram referência ao seu dialeto galileu como evidência de que era, pelo menos, conterrâneo do Prisioneiro do sumo sacerdote; porém, mais ameaçador ainda do que tudo, um parente de Malco, cuja orelha Pedro havia decepado com a espada, indagou peremptoriamente: “Não te vi eu, no horto, com ele?” Pedro então foi tão longe, no curso das falsidades em que se havia iniciado, que entrou a imprecar e a jurar, e a declarar veementemente, pela terceira vez: “Não conheço o homem.” Quando as últimas falsidades profanas saíam de seus lábios, as notas claras do canto de um galo feriram-lhe os ouvidos,d e a lembrança da predição do Senhor brotou em sua mente. Trêmulo ante a desventurada verificação de sua pérfida covardia, voltou-se e cruzou com o olhar do Cristo mártir que, do meio da insolente populaça, mirava a face de Seu jactancioso, ainda que amoroso e fraco apóstolo. Fugindo do palácio, Pedro mergulhou na noite, chorando amargamente. Conforme o atesta sua vida posterior, aquelas lágrimas eram de real contrição e verdadeiro arrependimento. Primeira Apresentação de Cristo diante de PilatosComo já nos referimos, nenhum tribunal judaico tinha autoridade para aplicar a pena de morte; Roma imperial havia reservado para si própria tal prerrogativa. A proclamação unida dos sinedristas, de que Jesus merecia a morte, não terá efeito enquanto não fosse sancionada pelo legado do imperador, que naquela época era Pôncio Pilatos, governador, ou mais corretamente, procurador da Judéia, Samaria e Iduméia. Pilatos mantinha residência oficial em Cesaréia,e na costa do Mediterrâneo; porém era costume seu estar presente em Jerusalém ao tempo das grandes festas hebraicas, provavelmente com o intuito de manter a ordem, ou de sufocar prontamente qualquer perturbação entre as vastas e heterogêneas multidões que apinhavam a cidade nessas ocasiões festivas. O governador e seus acompanhantes estavam em Jerusalém naquela momentosa época de Páscoa. Cedo, na manhã de sexta-feira, o “conselho todo”, quer dizer, o Sinédrio, levou Jesus manietado ao solo do tribunal de Pôncio Pilatos, mas, com minucioso escrúpulo, abstiveram-se de entrar no local para não se contaminarem, porquanto o lugar do tribunal fazia parte da casa de um gentio, e nalgum compartimento poderia haver pão levedado, e até mesmo a proximidade poderia torná-los cerimonialmente impuros. Deixamos a cada um classificar o caráter de homens temerosos da mera proximidade com o fermento, ao mesmo tempo que se mostravam sedentos de sangue inocente! Em consideração por seus escrúpulos, Pilatos saiu do palácio e, como lhe entregassem o Prisioneiro, perguntou: “Que acusação trazeis contra este homem?” A pergunta, embora estritamente adequada e judicialmente necessária, surpreendeu e desapontou os líderes sacerdotais que, evidentemente, haviam esperado que o governador aprovasse seu veredito e, como mera formalidade, desse sentença de acordo; mas, em lugar de agir assim, Pilatos estava evidentemente disposto a exercer sua autoridade de jurisdição original. Com mal disfarçada humilhação, o seu porta-voz, provavelmente Caifás, respondeu: “Se este não fosse malfeitor, não to entregaríamos.” Agora foi a vez de Pilatos fingir suscetibilidade, retrucando, como se dissesse: Muito bem. Se não quereis apresentar acusação segundo a ordem devida, tomai-o e julgai-o de acordo com a vossa lei; não me perturbeis com o assunto. Os judeus entretanto tornaram: “A nós não nos é lícito matar pessoa alguma.” O apóstolo João insinua, nesta última frase, a determinação da parte dos judeus de levarem Jesus à morte, não somente com a sanção dos romanos, mas também por intermédio de executores romanos;f porque, como facilmente podemos ver, se Pilatos tivesse aprovado a sentença de morte e entregado o Prisioneiro aos judeus para sua aplicação, Jesus teria sido apedrejado, de acordo com o castigo hebraico para a blasfêmia; ao passo que o Senhor havia claramente predito que Sua morte seria por crucifixão, que era um método romano de execução, jamais usado pelos judeus. Além do mais, se Jesus tivesse sido morto pelos líderes judaicos, ainda que com assentimento do governo, poderia levantar-se uma insurreição entre o povo, porque havia muitos que acreditavam Nele. Os astuciosos hierarcas estavam determinados a conseguir a Sua morte mediante condenação romana. “E começaram a acusá-lo, dizendo: Havemos achado este pervertendo a nossa nação, proibindo dar o tributo a César, e dizendo que Ele mesmo é Cristo, o rei.”g É importante notar que nenhuma acusação de blasfêmia foi feita a Pilatos; houvesse isso sido apresentado e o governador, inteiramente pagão, tanto de coração quanto intelectualmente, teria provavelmente desprezado a denúncia como totalmente indigna de ser ouvida, porquanto Roma, com seus muitos deuses, cujo número aumentava rapidamente pelo costume pagão da deificação dos mortais, desconhecia ofensa tal como a blasfêmia, na acepção judaica. Os sinedristas acusadores não hesitaram em substituir a blasfêmia, que era o maior crime conhecido no código hebraico, pela acusação de alta traição; a mais grave ofensa relacionada na categoria romana de crimes. Ante as acusações vociferantes dos principais dos sacerdotes e anciãos, o sereno e majestoso Cristo não Se dignou de replicar. A eles, Sua última palavra já havia sido dita, até que chegasse a ocasião designada para um outro julgamento no qual Ele haveria de ser o Juiz, e aqueles os prisioneiros a serem julgados. Pilatos surpreendeu-se ante o porte majestoso, ainda que submisso, de Jesus; havia sem dúvida muito de realeza naquele Homem; nunca antes havia uma pessoa igual se apresentado diante dele. A acusação, contudo, era séria; homens que pretendessem direitos reais poderiam tornar-se perigosos para Roma; entretanto, o Acusado nada respondera diante da acusação. Entrando no salão de julgamento, Pilatos fez chamar a Jesus.h É evidente que alguns dos discípulos, e entre eles, quase certamente João, também entraram, como se depreende da narrativa detalhada dos acontecimentos que o quarto evangelho registra. Toda gente tinha liberdade de entrar, uma vez que a franquia ao público era um aspecto real e largamente divulgado dos julgamentos romanos. Pilatos, evidentemente sem qualquer animosidade ou preconceito contra Jesus, perguntou-Lhe: “Tu és o rei dos judeus? Respondeulhe Jesus: Tu dizes isso de ti mesmo, ou disseram-to outros de mim?” A contrapergunta do Senhor significava, e assim foi entendida, conforme a réplica de Pilatos o demonstra, em outras palavras, o seguinte: Perguntais isto no sentido romano e literal, como se eu fora rei de um reino terreno, ou no sentido judaico e mais espiritual? Uma resposta direta, “Sim”, teria sido verdadeira no sentido messiânico, mas inverídica de acordo com o sentido terreno; e um “Não” poderia ter sido inversamente considerado verdadeiro ou falso. “Pilatos respondeu: Porventura sou eu judeu? a tua nação e os principais dos sacerdotes entregaram-te a mim: que fizeste? Respondeu Jesus: O Meu reino não é deste mundo: se o Meu reino fosse deste mundo, pelejariam os Meus servos, para que Eu não fosse entregue aos judeus: mas agora o Meu reino não é daqui. Disse-lhe pois Pilatos: Logo tu és rei? Jesus respondeu: Tu dizes que Eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a Minha voz.” Tornou-se claro para o governador romano que aquele Homem maravilhoso, com Sua exaltada idéia de um reino não deste mundo, e de um império da verdade no qual haveria de reinar, não era um insurreto político, e seria absurdo considerá-Lo uma ameaça às instituições romanas. Aquelas últimas palavras a respeito da verdade, haviam sido as mais enigmáticas de todas; Pilatos ficara impaciente e talvez um pouco alarmado com a importância delas. “Que é a verdade?” exclamou ele, mais numa atitude de apreensão do que de inquirição, na expectativa de uma resposta, enquanto se adiantava para deixar o salão. Aos judeus de fora, ele anunciou a absolvição do Prisioneiro: “Não acho nele crime algum”, foi o veredicto. Mas os principais dos sacerdotes, escribas e anciãos do povo não se dissuadiram. Sua sede do sangue do Santo havia-se tornado uma obsessão. Desgovernada e ferozmente gritaram: “Alvoroça o povo ensinando por toda a Judéia, começando desde a Galiléia até aqui.” A referência à Galiléia sugeriu a Pilatos uma nova orientação de procedimento. Havendo confirmado, por inquirição, que Jesus era galileu, decidiu enviar o Prisioneiro a Herodes, o governante vassalo daquela província, que se encontrava em Jerusalém na ocasião.i Agindo assim, Pilatos esperava livrar-se de mais responsabilidade no caso, e além disso Herodes, com o qual tinha estado em inimizade, poderia apaziguar-se com o ato. Cristo Perante HerodesjHerodes Antipas, o degenerado filho do seu infame antepassado, Herodes, o Grande,k era naquele tempo tetrarca da Galiléia e Peréia, e por costume popular, ainda que sem sanção imperial, era lisonjeiramente chamado de rei. Havia sido ele quem, para cumprir um voto ímpio, inspirado pelos voluptuosos agrados de uma mulher, havia ordenado o assassínio de João Batista. Governava ele como vassalo de Roma, e professava ser ortodoxo nas observâncias do judaísmo. Tinha vindo a Jerusalém, com toda a pompa, para festejar a Páscoa. Herodes agradou-se de que Pilatos lhe houvesse enviado Jesus, não só por ter sido um ato voluntário da parte do procurador, constituindo uma preliminar para a reconciliação entre os dois governantes, conforme os eventos posteriores confirmaram,l mas também porque tinha sido uma forma de satisfazer a curiosidade de Herodes em ver a Jesus, de quem havia ouvido tanto, cuja fama o havia aterrorizado, e por quem esperava, agora, ver realizado algum milagre interessante.m O temor que Herodes havia sentido a respeito de Jesus, a quem supersticiosamente julgara ser a reencarnação de sua vítima assassinada, João Batista, fora substituído por divertido interesse, quando vira o tão famoso Profeta da Galiléia em cadeias à sua frente, vigiado por uma guarda romana e acompanhado por oficiais eclesiásticos. Herodes começou a interrogar o Prisioneiro, mas Jesus permaneceu em silêncio. Os principais dos sacerdotes e escribas vociferavam, veementemente, suas acusações, mas nenhuma palavra foi pronunciada pelo Senhor. Herodes é o único personagem histórico ao qual Jesus aplicou um epíteto pessoal desrespeitoso. “Ide e dizei àquela raposa”, disse Ele certa vez a alguns fariseus que Lhe haviam vindo com a história de que Herodes pretendia matá-Lo.n Tanto quanto sabemos, Herodes foi, mais tarde, distinguido como o único ser que viu Cristo face a face, falou-Lhe, mas nunca Lhe ouviu a voz. Para os pecadores penitentes, as mulheres em prantos, as crianças buliçosas; para os escribas, fariseus, saduceus e rabis; para o sumo sacerdote perjuro e seu obsequioso e insolente lacaio, bem como para Pilatos, o pagão, Cristo tivera palavras — de conforto ou instrução, de advertência ou repreensão, de protesto ou de denúncia — entretanto, para Herodes, a raposa, Ele teve somente desdenhoso e majestático silêncio. Profundamente melindrado, Herodes passou das perguntas insultuosas aos atos de escárnio malévolo. Ele e seus homens de armas divertiram-se à custa do Cristo sofredor, “desprezaram-no e, escarnecendo dele”, o fantasiaram, “vestiram-no de uma roupa resplandecente e tornaram a enviá-lo a Pilatos.”o Herodes nada havia encontrado em Jesus para justificar a condenação. Cristo Novamente Perante PilatospO procurador romano, vendo que não poderia furtar-se a nova consideração do caso, convocou “os principais dos sacerdotes, os magistrados e o povo e disse-lhes: Haveis-me apresentado este homem como pervertedor do povo; e eis que, examinando-O na vossa presença, nenhuma culpa, das de que O acusais, acho neste homem. Nem mesmo Herodes, porque a ele vos remeti, e eis que não tem feito coisa alguma digna de morte. Castigá-lo-ei pois, e soltá-loei.” O desejo de Pilatos de salvar Jesus da morte era justo e genuíno; sua intenção de açoitar o Prisioneiro, cuja inocência havia afirmado e reafirmado, era uma infame concessão à prevenção dos judeus. Ele sabia que a denúncia de sedição e traição não tinha base, e que o próprio forjamento de tal acusação pela hierarquia judaica, cuja lealdade simulada a César era apenas uma capa para o ódio inerente e imorredouro, era ridículo ao extremo; e percebia plenamente que os líderes sacerdotais lhe haviam entregado Jesus movidos por inveja e dolo.q Era costume do governador, pela Páscoa, perdoar e libertar qualquer dos prisioneiros condenados que o povo quisesse indicar. Naquela ocasião, existia no cárcere, aguardando ser executado, “um preso bem conhecido, chamado Barrabás”, que havia sido condenado por sedição, por haver incitado o povo à revolta, e cometido um assassínio. Esse homem estava condenado pela exata acusação de que Pilatos havia declarado especificamente, e Herodes por dedução, que Jesus era inocente, e além do mais Barrabás era assassino. Pilatos imaginara pacificar os sacerdotes e o povo libertando Jesus como alvo do indulto pascal; isso seria um reconhecimento tácito da culpa de Cristo ante o tribunal eclesiástico, e praticamente um endosso da sentença de morte, cancelada pelo perdão oficial. Desse modo, perguntou-lhes: “A quem quereis que vos solte? Barrabás, ou Jesus que é chamado Cristo?” Parece ter havido um breve intervalo entre a pergunta de Pilatos e a resposta do povo, durante o qual os principais dos sacerdotes e anciãos se ocuparam no meio da multidão, insistindo em que pedissem a libertação do insurreto assassino. De forma que, ao repetir Pilatos a pergunta: “Qual dos dois quereis que vos solte?” a congregação de Israel clamou “Barrabás”. Pilatos, surpreendido, desapontado e enraivecido, perguntou: “Que farei então de Jesus, chamado Cristo? Disseram-lhe todos: Seja crucificado. O governador, porém, disse: Mas que mal fez Ele? E eles mais clamavam, dizendo: Seja crucificado.” O governador romano perturbou-se extremamente e estava intimamente atemorizado. Para mais ainda aumentar sua perplexidade, recebeu uma mensagem de advertência de sua esposa, no momento em que se assentava na cadeira de juiz: “Não entres na questão desse justo, porque num sonho muito sofri por causa dele.” Os que não conhecem a Deus são caracteristicamente supersticiosos. Pilatos temia imaginar que terrível portento o sonho de sua esposa poderia pressagiar, mas, verificando que não conseguiria prevalecer, e antevendo um tumulto entre o povo se persistisse na defesa de Cristo, pediu água e lavou as mãos diante da multidão, um ato simbólico de negar responsabilidade, que todos entenderam, proclamando ao mesmo tempo: “Estou inocente do sangue deste justo: considerai isso.” Então se levantou aquele terrível clamor autocondenatório do povo do convênio: “O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.” A História presta aterrador testemunho do cumprimento literal daquela pavorosa invocação.r Pilatos soltou Barrabás, e entregou Jesus aos soldados para ser açoitado. O chicoteamento era uma pavorosa preliminar da morte na cruz. O instrumento de castigo era um açoite de muitas pontas, guarnecidas de metal e pontiagudos pedaços de osso. Há casos narrados em que o condenado morria sob o látego, escapando, assim, aos horrores da crucifixão em vida. De acordo com os brutais costumes da época, Jesus, enfraquecido e sangrando pelo pavoroso açoitamento que havia sofrido, foi entregue aos soldados semi-selvagens para que se divertissem. Aquela não era uma vítima comum, de maneira que o grupo todo se reuniu no pretório ou grande vestíbulo do palácio, para tomar parte no diabólico divertimento. Arrancaram de Jesus as vestes exteriores, e vestiram-No de um manto de púrpura.s Depois, com um senso de demoníaco realismo, teceram uma coroa de espinhos e colocaram-na sobre a cabeça do Padecente; uma cana foi-lhe colocada na mão direita como um cetro real, e ao se encurvarem no arremedo de homenagem, saudavam-no dizendo: “Salve, Rei dos judeus!” Arrebatando-Lhe a cana ou vara, brutalmente o feriram na cabeça com ela, fazendo penetrar-Lhe os cruéis espinhos na carne; esmurraram-no e cuspiram Nele com vil e criminosa perversidade.t Pilatos, provavelmente, havia observado essa cena bárbara. Interrompeu-a e resolveu fazer nova tentativa de tocar as cordas da piedade judaica, se é que tal coisa existia. Saiu e disse à multidão: “Eis aqui vo-lo trago fora, para que saibais que não acho nele crime algum.” Esta era a terceira proclamação definida do governador, quanto à inocência do Prisioneiro. “Saiu pois Jesus fora, levando a coroa de espinhos e o vestido de púrpura. E disse-lhes Pilatos: Eis aqui o homem!”u Pilatos parece ter confiado na lastimável aparência do açoitado e sangrento Cristo para abrandar o coração dos judeus enlouquecidos, mas o efeito fracassou. Pensai no terrível fato: um gentio, um pagão, que não conhecia a Deus, rogando aos sacerdotes e ao povo de Israel pela vida do próprio Senhor e Rei deles! Quando, inabaláveis ante aquele espetáculo, os principais dos sacerdotes e oficiais clamaram com crescente espírito de vingança, “cruçifica-o, crucifica-o”, Pilatos pronunciou a sentença fatal: “Tomai-o vós e crucificai-o”, mas acrescentou com amarga ênfase: “Não encontro falta nele.” Deve-se lembrar que a única acusação apresentada contra Cristo ao governador romano havia sido a de sedição; os perseguidores judaicos tinham evitado cuidadosamente até mesmo a simples menção à blasfêmia, que havia sido a ofensa pela qual haviam considerado Jesus digno de morte. Agora que a sentença de crucifixão havia sido conseguida de Pilatos, despudoradamente tentavam fazer crer que a decisão do governador era, tão somente, a ratificação da sentença de morte que eles próprios haviam decretado; desse modo, disseram: “Nós temos uma lei, e, segundo a nossa lei deve morrer, porque se fez Filho de Deus.” O que significaria isso? Aquele título impressionante, de Filho de Deus, feriu ainda mais profundamente a perturbada consciência de Pilatos. Uma vez mais conduziu Jesus para a sala do tribunal e, atemorizado, perguntou-Lhe: “Donde és tu?” A pergunta era como se pretendesse saber se Jesus era humano ou sobre-humano. Uma confissão direta da divindade do Senhor telo-ia aterrorizado, mas poderia não esclarecer o governante pagão, de maneira que Jesus nada respondeu. Pilatos ainda mais se surpreendeu, e talvez se haja ofendido de certa maneira ante essa aparente desconsideração por sua autoridade. Exigindo uma explicação indagou: “Não me falas a mim? não sabes que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar?” Respondeu-lhe então Jesus: “Nenhum poder terias contra mim, se de cima te não fosse dado; mas aquele que me entregou a ti maior pecado tem.” As posições se haviam invertido; Cristo era o Juiz, e Pilatos sujeito à Sua decisão. Ainda que não tivesse sido declarado inocente, o romano fora considerado menos culpado que aquele ou aqueles que haviam entregado Jesus ao seu poder, e que haviam exigido dele uma condenação injusta. O governador, embora tendo pronunciado sentença, ainda buscava meios de libertar o submisso Sofredor. Sua primeira mostra de vacilação foi recebida pelos judeus com o clamor: “Se soltas este, não és amigo do César: qualquer que se faz rei é contra o César.” Pilatos tomou seu lugar na cadeira de julgamento que estava situada no lugar do Pavimento, ou Gabbatha, fora do salão. Estava irritado com aqueles judeus que ousavam sugerir que não era amigo de César, e que poderiam levar tal denúncia numa embaixada de reclamação a Roma para abalarem seu prestigio, em exagerada acusação. Apontando para Jesus, exclamou com sarcasmo evidente: “Eis aqui o vosso Rei.” Os judeus, porém, retrucaram com brados ameaçadores e sinistros: “Fora com ele, fora com ele, crucifica-o.” Em mordaz referência à sua subjugação nacional, Pilatos perguntou ainda com mais mordaz ironia: “Hei de crucificar o vosso Rei?” E os principais dos sacerdotes clamaram em alta voz: “Não temos rei, senão o César.” Assim era, e assim deveria ser. O povo que havia, por convênio, aceitado a Jeová como seu Rei, agora O rejeitava pessoalmente, e aceitava a soberania de César. Servos de César e súditos seus têm eles sido através dos séculos desde esse tempo. Miserável é o estado do homem, ou de uma nação, que em coração e espírito não tem rei, a não ser o César!v Onde residia a causa da fraqueza de Pilatos? Era ele o representante do imperador, o procurador imperial com poderes para crucificar ou salvar; oficialmente um autocrata. Sua convicção da inocência de Cristo e seu desejo de salvá-Lo da cruz estão fora de dúvida. Por que titubeava Pilatos, hesitando e vacilando até render-se em violação da própria consciência e vontade? Porque, em última análise ele era mais escravo que livre. Estava escravizado a seu passado. Sabia que, se fosse feita queixa contra ele em Roma, sua corrupção e crueldade, suas extorsões e morticínios injustificáveis seriam trazidos a julgamento. Ele era o governante romano, mas o povo sobre o qual exercia domínio oficial deleitava-se em vê-lo encolher-se, quando fizera estalar, perfidamente, sobre sua cabeça, o látego de um relatório ameaçador a seu respeito ao seu imperial senhor, Tibério.w Judas IscariotesxQuando Judas Iscariotes viu quão terrivelmente repercutira sua traição, tomou-se de violento remorso. Durante o julgamento de Cristo perante as autoridades judaicas, com as correspondentes humilhações e crueldades, o traidor havia visto a seriedade de sua ação; e quando o inerme Sofredor fora entregue aos romanos e a consumação fatal se tornou uma certeza, a enormidade de seu crime enchera Judas de inominável horror. Precipitando-se para junto dos principais sacerdotes e anciãos, enquanto as preparações finais para a crucifixão do Senhor estavam em andamento, implorou aos líderes sacerdotais que recebessem de volta o amaldiçoado salário que lhe haviam pago, clamando em agônico desespero: “Pequei, traindo o sangue inocente.” Pode ser que tivesse esperado vagamente uma palavra de simpatia dos conspiradores em cujas mãos, iniquamente hábeis, havia-se mostrado um instrumento pressuroso e útil; é possível que tenha tido a esperança de que sua confissão pudesse deter a corrente da malignidade, e que pedissem comutação da sentença. Os governantes em Israel, porém, repeliram-no com desagrado. “Que nos importa?” escarneceram eles, “Isso é contigo.” Ele havia servido aos seus propósitos, haviam-lhe pago o preço, e não queriam ver a sua face nunca mais. Desapiedadamente, lançaram-no de volta à assombrada escuridão de sua consciência enlouquecida. Agarrando ainda a sacola das moedas, instrumento tão real para recordar-lhe seu apavorante pecado, correu ao templo, entrando até mesmo nos precintos reservados aos sacerdotes, e lançou as peças de prata ao pavimento do santuário.y Depois, sob o impulso aguilhoante de seu senhor, o demônio, de quem se havia tornado escravo de corpo e alma, retirou-se e foi-se enforcar. Os principais dos sacerdotes juntaram as peças de prata e com sacrílego escrúpulo, realizaram uma reunião solene para determinar o que fariam com o “preço de sangue”. Como considerassem ilegal adicionar as moedas poluídas ao tesouro santo, compraram com elas um certo campo de um oleiro, que seria o exato lugar onde Judas se teria suicidado; aquele trato de terra designaram eles para lugar de sepultamento de forasteiros, estrangeiros e pagãos. O corpo de Judas, o traidor de Cristo, foi provavelmente o primeiro a ser ali enterrado. E aquele campo foi chamado “Aceldama, que quer dizer, campo de sangue.”z Notas do Capítulo 34
Qual foi a sentença de Jesus Cristo?Pilatos pediu que lhe trouxessem água, lavou as mãos e, dizendo-se inocente do que estava a acontecer, entregou Cristo à multidão, para que fosse executada a sentença de morte que eles tanto almejavam.
O que procuravam para condenar Jesus?Buscando atender à lei, seus acusadores procuraram por falsos testemunhos contra Jesus para configurar o fato e para que a lei fosse supostamente respeitada: “Ora, os príncipes dos sacerdotes, e os anciãos, e todo o conselho, buscavam falso testemunho contra Jesus, para poderem dar-lhe a morte” como narra Mateus no ...
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