É possível que os bens da pessoa jurídica respondem por dívidas dos seus sócios ou administradores por meio da desconsideração inversa?

Recentemente, o dispositivo legal que previa os elementos capazes de autorizar a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, artigo 50 do Código Civil Brasileiro, foi modificado pela Lei da Liberdade Econômica (Lei Federal n. 13.874/2019) e, com isso, houve a inauguração de novo capítulo do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro, com a criação de cenário propício ao empreendedorismo, resguardando previsibilidade e segurança jurídica aos jurisdicionados.

A Lei da Liberdade Econômica surgiu em meio a urgência e a relevância de recuperação econômica brasileira, reafirmando o princípio de base constitucional da livre iniciativa, a fim de incentivar novos negócios, estabelecer garantias de livre mercado e reconhecer a vulnerabilidade do particular perante o Estado. Desse modo, tendo como um de seus objetivos a diminuição dos excessos de intervenção estatal sobre o exercício das atividades econômicas, a nova Lei trouxe maior incentivo e segurança jurídica aos investimentos.

Antes de entender os pontos de modificação da Lei da Liberdade Econômica na teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica (artigo 50 do Código Civil Brasileiro), necessário compreender o que seria este instituto, exigindo, para tanto, o esclarecimento do que seria pessoa jurídica, retomando suas principais características de autonomia patrimonial e de limitação de responsabilidade.

A pessoa jurídica é criação da vontade humana, fruto de uma permissão legislativa que contribuiu para o desenvolvimento econômico e social e revelou-se interessante e viável ao Estado e ao sistema capitalista1. De acordo com os artigos 45, 985 e 1.150, do Código Civil Brasileiro, a existência legal da pessoa jurídica de direito privado tem origem na efetivação do registro dos atos constitutivos no órgão competente. Assim, após adquirir personalidade própria, a pessoa jurídica não mais se confunde com seus sócios, mantém individualidade e se beneficia da autonomia patrimonial.

Logo, verifica-se que a consequência imediata da personificação, ou seja, da criação da pessoa jurídica, é a distinção do patrimônio da empresa dos bens particulares dos membros que a compõem, ou seja, sócios e administradores. A pessoa jurídica, após concebida, adquire direitos, contrai obrigações e, através de seu patrimônio, constituído por meio de seu capital social, assegura a satisfação de seus credores, consagrando o princípio da autonomia patrimonial.

Em razão das referidas construções doutrinárias e legislativas, em regra, no âmbito cível, os sócios ou os administradores não respondem com seus bens pessoais por dívidas da pessoa jurídica, somente em casos excepcionais, quando demonstrado abuso de direito.

Assim, observado no caso concreto que a pessoa jurídica está sendo utilizada com a finalidade de fraudar credores, de desviar patrimônios e de esquivar o ente empresarial do pagamento de dívidas, ou seja, para fins ilícitos, não é possível permitir e perpetuar tal abuso de direito, visto que tal situação viola a função social da referida construção doutrinária e legislativa.

Desse modo, com a demonstração pelos prejudicados ou pelo Ministério Público de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial entre os bens da empresa e dos sócios, aplicável a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica, a fim de atingir o patrimônio de administradores ou de sócios beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso (art. 50 do Código Civil).

Diante disso, observa-se que a desconsideração da personalidade jurídica trata-se de medida excepcional, aplicada como uma punição quando a pessoa jurídica insolvente é utilizada de forma abusiva por seus sócios, titulares ou administradores, suspendendo, casuisticamente, sua autonomia patrimonial e afastando o princípio de limitação da responsabilidade, de modo a atingir o patrimônio dos sócios a fim de saldar débitos da pessoa jurídica, ou atingir o patrimônio da pessoa jurídica por débitos dos sócios, ou ainda, atingir o patrimônio de outras empresas que compõem o grupo econômico por débito de alguma das empresas coligadas.

Portanto, possível afirmar que a desconsideração da personalidade jurídica é sanção aplicável aos sócios ou aos administradores que perpetram abuso de direito, utilizando-se da autonomia patrimonial do ente empresarial para fins escusos e ilícitos.

Dessa forma, posto que a autonomia patrimonial e a limitação de responsabilidade são as principais características adquiridas pela pessoa jurídica após a sua criação, bem como que a desconsideração da personalidade jurídica é exceção à regra de separação patrimonial da pessoa jurídica e de seus sócios ou administradores, que pode ser determinada pelo Poder Judiciário caso os credores prejudicados demonstrem a presença de abuso de direito, passa-se à análise das mudanças desse instituto consagradas pela Lei da Liberdade Econômica.

Inicialmente, mesmo com as mudanças legislativas, a desconsideração da personalidade jurídica continua a ser uma medida excepcional, com aplicação episódica através de decisão judicial, dependente do “abuso da personalidade jurídica”, verificável em casos de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

A compreensão do que vem a ser cada um desses requisitos, no entanto, foi restringida a uma interpretação pré-determinada pelo legislador, o que garante segurança jurídica aos empreendedores que agem de boa-fé e observando as legislações aplicáveis.

Antes da alteração legislativa pela Lei da Liberdade Econômica, era autorizada a desconsideração quando observado abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial.

Atualmente, em que pese a Lei da Liberdade Econômica ter mantido os mesmos requisitos de aplicação da redação anterior do artigo 50 do Código Civil, o legislador, inserindo no texto da Lei aquilo que já era entendimento majoritário dos Tribunais, definiu mais objetivamente alguns atos que podem ser interpretados como confusão patrimonial ou desvio de finalidade, estabeleceu também que a aplicação da desconsideração somente atingirá o patrimônio dos sócios ou administradores que tiverem se beneficiado direta ou indiretamente pelo abuso, consagrou a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, que autoriza a responsabilização da pessoa jurídica por débitos dos sócios ou dos administradores, e reiterou que a mera existência de grupo econômico empresarial não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, havendo a necessidade de demonstração dos elementos que caracterizam abuso de direito.

Em vista disso, conclui-se que, apesar de as inovações realizadas pela Lei n. 13.874/2019, no geral, terem refletido entendimento jurisprudencial, ou seja, compreensão que já vinha se consolidando pela maioria dos Tribunais do Poder Judiciário, estas mudanças atribuem maior objetividade às hipóteses concretas de aplicação do instituto, limitando-se o risco de eventuais empreendimentos mal sucedidos e esclarecendo aos credores lesados com eventual abuso de personalidade jurídica, quais são os elementos que devem ser demonstrados para a aplicação da desconsideração com mais objetividade e clareza.

Portanto, de maneira geral, as mudanças realizadas pela Lei da Liberdade Econômica quanto à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica foram positivas e refletirão no ordenamento jurídico brasileiro, visto que diminuirão entendimentos destoantes dos Tribunais Nacionais, trazendo maior coerência, integridade e segurança jurídica às hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica do ente empresarial.

Referências:

NAHAS, Thereza C.. Desconsideração da personalidade jurídica no marco da lei da liberdade econômica. Disponível em: www.cielolaboral.com. Acesso em: 26 jul. 2020

RODRIGUES JR., Otavio Luiz. LEONARDO, Rodrigo Xavier. Comentários à Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019 / coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

TARTUCE, Flávio. DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Lei da Liberdade Econômica: diretrizes interpretativas da nova lei e análise detalhada das mudanças no Direito Civil e nos registros públicos – parte 2. Disponível em http://genjuridico.com.br/2019/09/25/mudancas-no-direito-civil-lle/ . Acesso em: 08 nov. 2020.

TEIXEIRA, Tarcísio. Direito empresarial sistematizado: doutrina, jurisprudência e prática / Tarcísio Teixeira. – 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica?

A desconsideração inversa ou invertida torna possível responsabilizar a empresa pelas dívidas contraídas por seus sócios e tem como requisito o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou a confusão patrimonial (CPC, art. 133, § 2º; CC, art. 50).

É possível responsabilizar pessoalmente os sócios pelas dívidas da pessoa jurídica?

O artigo 135 em seu inciso I e III afirma que os sócios, diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultante de atos praticados com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatutos.

Quando os bens dos sócios respondem pelas dívidas da empresa?

Sócios respondem por dívida de empresa encerrada de forma irregular, diz TJ-SP. Na hipótese de dissolução irregular de sociedade, sem a existência de bens no polo passivo da execução, o patrimônio particular dos sócios fica sujeito à constrição, para saldar a dívida.

Quando pode ser aplicada a desconsideração expansiva da personalidade jurídica?

A desconsideração expansiva da personalidade jurídica se faz necessária quando a pessoa física, que deveria responder subsidiariamente pelos débitos da pessoa jurídica, também não dispõe de patrimônio suficiente, tendo transferido os bens para uma segunda pessoa jurídica.