Como regra os municípios têm competência para licenciar as atividades de impacto local?

AUTONOMIA MUNICIPAL PARA GERIR SISTEMA AMBIENTAL PRÓPRIO É LIMITADA

Como regra os municípios têm competência para licenciar as atividades de impacto local?
Antonio Inage de Assis Oliveira

Por Antonio Inagê de Assis Oliveira

Podem os Municípios estabelecer um sistema de licenciamento ambiental próprio, autônomo? Essa é uma pergunta que vem sendo feita desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que não só elevou o Município à condição de ente federativo, como também lhe atribuiu a competência administrativa de legislar sobre meio ambiente.1

Entretanto, o art. 24 é claro ao limitar competência à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre questões ambientais.2

Assim, a resposta, em minha opinião, á luz apenas da legislação federal, é pela negativa.

É de se ver, primeiramente, que o licenciamento ambiental é um instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, criada pela Lei nº 6.938/81. Como o próprio nome indica, essa política é nacional, isto é, válida e aplicável obrigatoriamente em todo o território brasileiro. Desta forma, seus princípios e suas linhas gerais são traçadas por lei federal, embora tenha sua execução descentralizada.

Por outro lado, não há dúvida que o licenciamento ambiental é restritivo do direito individual de propriedade e do livre exercício de atividade econômica o que — obviamente — exige a existência de uma lei ordinária prévia que o autorize.3

A própria obrigatoriedade da existência prévia do alvará de licença para “a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, bem como capazes, sob qualquer forma de causar degradação ambiental”, já é, por si só, restritiva. Nem se alegue que ela é apenas o reconhecimento pelo Estado 4 dessa restrição, feita em benefício de todos os usufrutuários do meio ambiente hígido, direito difuso que cabe ao Poder Público e à coletividade defender.5

Desta forma, para o licenciamento ambiental poder ser aplicável em todo o país, depende de lei geral federal. Essa lei existe, é a Lei n° 6.938/81, cujo artigo 10 é impositivo ao determinar o prévio licenciamento para as obras e atividades potencialmente poluidoras. O mesmo artigo, também expressamente, determina que o prévio licenciamento seja feito “por órgão estadual competente”, abrindo exceção apenas para o licenciamento em nível federal nas hipóteses previstas no seu § 4°. Portanto, o mesmo dispositivo que autoriza a imposição da restrição, cria uma obrigação para todos os empreendedores, e determina quem será o executor da medida.

É de se ver que o dispositivo instituidor do “licenciamento ambiental” não outorga competência licenciatória genérica aos integrantes do SISNAMA, mas apenas ao órgão estadual competente, isto é, aquele indicado pela legislação estadual e, especificamente, ao IBAMA, designado órgão licenciador no nível federal. Assim, não “arranha” a autonomia estadual, mas delimita precisamente o campo da competência, que não se estende ao âmbito municipal.

Apenas a legislação federal pode estabelecer esse tipo de competência, tendo em vista instrumentar uma Política Nacional. Desta forma, em princípio, o Município, a quem a Constituição excluiu a capacidade legislativa sobre matéria ambiental, não tem força para instituir um sistema de licenciamento ambiental próprio, que substitua a licença prevista na legislação federal. Apenas pode legislar sobre matéria de interesse local, embora, em cumprimento deste mister, possa suplementar a legislação federal e estadual.

O professor Raul Machado Horta, emérito constitucionalista mineiro, ao analisar o tema “Município e Meio Ambiente”, com felicidade expõe a questão da competência municipal de legislar sobre meio ambiente:

Não obstante o relevo que a Constituição da República conferiu ao meio ambiente, tornando-o objeto de atividade legislativa federal e estadual e matéria destacada no Capítulo VI, Da Ordem Social (Título VIII), a Constituição Federal não atribuiu, explicitamente ao Município a indispensável competência para legislar sobre meio ambiente. A pesquisa do texto constitucional revela que a Constituição deixou de inserir a legislação direta e autônoma sobre o meio ambiente na competência do Município. O art. 30 da Constituição da República, que é a sede de competência legislativa do Município, não emprega a locução, como o fez em relação à União e ao Estado, de modo a autorizar a legislação material correspondente. É certo que a Constituição mantém e preserva a autonomia legislativa do Município. A questão, entretanto, não se coloca no plano da autonomia legislativa, que é irrecusável. O que se assinala é a inexistência da competência municipal explícita para legislar sobre meio ambiente. É o Município competente para “legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual, no que couber” (Constituição da República, art. 30, I e II).

Não sendo a legislação sobre o meio ambiente matéria deferida explicita e diretamente ao Município, ao contrário do que ocorreu com a União e os Estados, que receberam da Constituição a competência explícita e direta para legislar sobre meio ambiente, a conseqüência que se extrai da diversidade de tratamento é que, no caso do Município, a legislação sobre meio ambiente, se houver, deverá configurar assunto de interesse local ou decorrer da residual suplementação da legislação federal e estadual no que couber. Os dois pressupostos aqui admitidos, a configuração de interesse local e a secundária suplementação da legislação federal e estadual — para abrigar eventual legislação municipal sobre o meio ambiente, recomendam cautela por parte do legislador local no seu exercício. (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, 1995, p. 314)

O artigo 30, I, da Lei Maior estabelece a principal competência legislativa municipal, qual seja: “legislar sobre assuntos de interesse local”. Essa expressão, “interesse local ”, é a chave para a interpretação da legislação municipal e para dirimir aparentes conflitos entre a legislação municipal e a federal e estadual, principalmente no que respeita à legislação de controle ambiental.

Na verdade, o legislador federal foi sábio. Não atribuiu essa competência ao Município porque dela ele não necessita. O Município tem competência para regrar o uso do solo em seu território. Assim, emite suas licenças edilícias, que são indispensáveis para a localização, construção, instalação, ampliação e funcionamento de qualquer empreendimento (mesmo uma simples obra de reforma) em seu território. Portanto, nada impede que o Município estabeleça parâmetros ambientais para a outorga dessas licenças. O próprio dispositivo federal, que criou o licenciamento ambiental, deixa claro que tais licenças são imprescindíveis ao determinar que a licença ambiental é exigível “sem prejuízo de outras licenças exigíveis”, como são as edilícias.

Verifica-se, assim, que o Município não necessita de estabelecer um licenciamento ambiental paralelo ao do Estado para defender o meio ambiente em seu território, que é uma obrigação constitucional. As próprias licenças municipais são mais que suficientes. Depende apenas da legislação municipal, que pode — e deve — inscrever em seu texto parâmetros de controle e proteção ao meio ambiente local.

Por conseguinte, se os Municípios têm meios e modos de cumprir sua obrigação constitucional de “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” e “preservar as florestas, a fauna e a flora”, a qual lhe é imposta pelo mesmo dispositivo que estabelece suas capacidades administrativas em comum com a União, os Estados e o Distrito Federal, parece claro que não lhes carece apelar para uma competência que não lhe foi outorgada. Insistir nesse caminho apenas levará às discussões judiciais, que não beneficiam ninguém, e muito menos o meio ambiente.

O Estado-membro, cuja competência para estabelecimento de regras para o uso do solo está constitucionalmente limitada, é que necessitava desse instrumento para cumprir a mesma missão. Por este motivo é que ela lhe foi outorgada pela legislação.

Mesmo anterior à Constituição Federal de 1988, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, em matéria de alargar as competências estaduais e municipais, lhe foi precursora. Editada na vigência da Emenda Constitucional n° 1/69, que tinha a União como única capaz de legislar sobre quase toda matéria de proteção ao meio ambiente, restando aos Estados apenas legislar concorrentemente sobre saúde pública e produção e consumo, realisticamente essa Lei, na prática, ampliou, pela descentralização das ações, a capacidade de intervenção dos Estados. O constituinte, reconhecendo a importância dessa descentralização, é que elevou os postulados e instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente ao nível constitucional, evitando e calando as inúmeras objeções que então serviam de instrumento para o poluidor e degradador eximir-se das obrigações impostas pelas leis estaduais.

A Lei n° 6.938/81, ao contrário do comum das normas editadas naqueles “anos de chumbo”, que procuravam centralizar em Brasília todas as ações e decisões, é eminentemente descentralizadora das ações de preservação e conservação ambiental. De forma surpreendente e até “subversiva”, transferiu para o âmbito dos Estados e Municípios praticamente toda a ação executiva da Política Nacional do Meio Ambiente, inclusive a fiscalizadora de seus ditames. Diz, por exemplo., o § 1° do art. 11: “A fiscalização e o controle da aplicação de critérios, normas e padrões de qualidade ambiental serão exercidos pelo IBAMA, em caráter supletivo da atuação do órgão estadual ou municipal competente”.

Daí, porém, não se pode tirar a ilação que os órgãos municipais, embora integrantes do SISNAMA, possam expedir as licenças ambientais de que trata a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que outorga essa competência expressamente ao órgão estadual competente e, supletivamente ao IBAMA, dentre todos os integrantes do SISNAMA.

Como o licenciamento municipal não seria suficiente para dar cumprimento ao artigo 10 da Lei n° 6.938/81, que exige expressamente licença expedida pelo órgão estadual competente, ou pelo IBAMA em caráter supletivo ou originário nos casos de seu parágrafo 4°, o estabelecimento de licença municipal representaria, para inúmeras atividades, um duplo e inútil licenciamento ambiental. As próprias obras municipais estariam submissas a esse crivo dobrado, não podendo o Município isentá-las do licenciamento estadual.

Assim, não me parece ser a criação de uma licença ambiental municipal o melhor caminho para dar cumprimento à sua missão constitucional de proteger e conservar o meio ambiente local. Ao contrário. Para cumprir seu poder-dever constitucional, basta que o Município aperfeiçoe sua legislação particular, nela imprimindo a variável ambiental, como é de sua estrita competência constitucional.

Isto, entretanto, não significa que o Município esteja proibido de estabelecer, à luz de seu interesse particular, uma espécie de licença ambiental, como crivo para emissão de licenças edilícias. Evidentemente que pode, entretanto, necessita editar uma legislação própria, de nível municipal, para regular a emissão dessa “licença”. Mas esse alvará não tem o condão de substituir a licença ambiental emitida na forma do artigo 10 da Lei nº 6.938/81, que continua a ser obrigatória.

Notas: (1 – Confira-se: art. 1° e art. 23, VI e VII, da Constituição Federal; 2 – Confira-se art. 24, VI, VII e VIII; 3 – Confira-se: art. 170 e seu §, da Constituição Federal. “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”; 4 – A outorga da licença não é um ato administrativo materialmente constitutivo de direito; é um ato declaratório.   Como já disse o saudoso Professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “Discute-se se ela é constitutiva de direito, porque esse direito preexistia no seu titular. Realmente, não é constitutiva quanto ao gozo do direito, porém o é quanto ao seu exercício. Este só pode licitamente ser levado a efeito depois de licenciada a atividade de que alguém tinha o gozo do direito. Por isso é constitutivo apenas sob o aspecto formal.” Pela licença, o Poder Público apenas reconhece o preexistente direito do empreendedor de executar certas obras ou de exercer atividades potencialmente poluidoras, desde que cercada de cuidados para que seja o menos agressiva possível para com o meio ambiente.   Em outras palavras, apenas examina o projeto para verificar se são obedecidas as garantias constitucionais do exercício do direito de propriedade segundo sua função social, dentre as quais está a proteção do meio ambiente para pleno uso e desfrute pelas atuais e futuras gerações; 5 – Confira-se: art. 225 da Constituição Federal.)

* Antonio Inagê de Assis Oliveira é advogado e consultor em direito ambiental. É presidente da ABAA – Associação Brasileira dos Advogados Ambientalistas. Membro da International Association for Impact Assessment (IAIA), tendo sido presidente da Seção Brasileira no biênio 1993/95. É membro do Conselho Editorial da Revista Ambiente Legal.

artigo de 2007

Quais são as situações em que o Município pode realizar o licenciamento ambiental?

Os Municípios podem realizar o licenciamento ambiental das atividades e dos empreendimentos que causem ou possam causar impacto ambiental local, ou que estão localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APA).

É competência municipal o licenciamento ambiental?

A competência para a condução do licenciamento ambiental pode ser da União, Estados ou Municípios. Os empreendimentos e atividades, no entanto, são licenciados por um único ente federativo.

De quem é a competência para o licenciamento ambiental?

A competência administrativa para o licenciamento, quando implicar impactos ambientais que ultrapassem os limites territoriais estaduais, é da União, por meio do IBAMA.

O que o Município pode licenciar?

Ao órgão ambiental Municipal cabe o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daqueles que lhe forem delegadas pelo Estado, por instrumento legal ou convênio.