Como era o sistema de votação na República Velha?

Introdução

Durante a Primeira República (1889-1930) percebemos que havia a necessidade de organizar o país sob novo regime e novos ideais através de leis. Leis estas que balizavam e positivavam os direitos civis e políticos dos brasileiros. Com isso, através da Constituição Federal de 1891 e as leis ordinárias de 1892, 1904 e 1916 institucionalizava-se os direitos políticos do país e regulava-se o processo eleitoral.

Tais leis serviriam para efetivar a participação política dos brasileiros no Brasil República. Porém, mecanismos como a obstrução do direito de votos dos analfabetos, fazem com que a participação do cidadão não se efetive como o propalado.

Decorreram também outras obstruções na marcha da cidadania brasileira: fraudes eleitorais durante o período conhecido como “coronelismo”. Os chamados ‘votos de cabrestos’ e ‘bico-de-pena’ eram fraudes impostas pelo interior do país e a ‘degola’, a manipulação realizada na Câmara dos Deputados, colocava em derrocada o ideal republicano que atribuía a todos os cidadãos a prerrogativa de escolha de seus governantes. Através do sistema do ‘coronelismo’ se conseguiu articular o controle do direito ao voto, desde a eleição até o resultado (LEAL, 2012).

1.O direito positivado

A República nasce no Brasil em 1889. Em seu início, de acordo com Carvalho (1987) havia a ‘esperança de expansão democrática’ (p.161) através dos intelectuais republicanos. Perpassados pelos ideais da Revolução Francesa e pautados pelos direitos de primeira geração, os direitos civis e políticos (BENEVIDES, 1998), firmava-se como o princípio republicano brasileiro.

Em 1891 promulgou-se a Constituição Federal brasileira. Seria esta a primeira lei do novo regime e se perduraria até o fim da conhecida Primeira República (1889-1930). Para além da Constituição, os demais dispositivos legais que regulam a organização política e, sobretudo, o processo eleitoral durante este período são as leis ordinárias: nº 35, de 26 de janeiro de 1892; nº 1.269, de 15 de novembro de 1904, a ‘Lei Rosa e Silva’; e, nº 3.208, de 27 de dezembro de 1916.

A primeira Carta Magna da recém-nascida república brasileira recebeu da ‘Lei Saraiva’ (1881) os cidadãos já alistados, mesmo os analfabetos, por ex offício, e o voto direto. Como inovação instituiu o sufrágio universal, todavia o voto decorria da exigência da alfabetização. Em sua redação no art. 70 os eleitores deveriam ser ‘cidadãos maiores de 21 anos’, no § 1º dos que não podem se alistar para votar estavam os mendigos, os analfabetos, as praças, e os religiosos.

Duas outras observações importantes na redação da Constituição de 1891 seriam: a exclusão da exigência de renda para ser eleitor ou candidato, fim do voto censitário, e a não obrigatoriedade no alistamento e no voto. Todas estas medidas faziam com que a participação da população ao pleito eleitoral fosse reduzida (NICOLAU, 2002).

A primeira Lei Ordinária de nº 35/1892 que regulou o processo eleitoral federal no País no regime republicano reafirmava o voto direto (artigos 34 e 37), também o voto secreto (§ 6º do artigo 43). No Capítulo II demonstra a organização do alistamento realizado em cada município por diversas comissões composta por cinco eleitores escolhido pelos membros do governo do município (art. 3º). Cada comissão era responsável pela divisão do município em seções para o alistamento (art 3º). A mesa eleitoral da seção do município era a responsável pelas cédulas de votação, apuração dos votos e os demais trabalhos do processo eleitoral (art.40).

A Lei Rosa e Silva (nº 1.269/1904) matinha muito da Lei de 1892 e concedia entre outros dispositivos a possibilidade de voto descoberto (art. 57). O que violava o sigilo do voto secreto, ainda em vigor pelo mesmo artigo. Era imposto ao mesmo artigo um paradoxo. Ainda contava com um parágrafo único: “Parágrafo único. O voto descoberto será dado apresentando o eleitor duas cédulas, que assinará perante a mesa eleitoral, uma das quais será depositada na urna e outra ficará em seu poder, depois de datadas e rubricadas ambas pelos mesários”.

Duas Leis de 1916, na presidência de Wenceslau Brás, visava tornar o processo eleitoral mais transparente. Eram elas a de nº 3.139/2016 e de nº 3.208/1916. A primeira Lei de nº 3.139 tratava sobre o alistamento eleitoral e teve como alteração importante a qualificação dos eleitores através das autoridades jurídicas (art. 4º). Este seria o ponto de partida para a criação da Justiça Eleitoral, criada com o Código Eleitoral de 1932. Porém, a segunda Lei de nº 3.208 mantinha a apuração dos votos nas mesas eleitoras. Para os autores que estudam o ‘coronelismo’ e a Primeira República, muitas das fraudes eleitorais ocorriam em torno da mesa eleitoral municipal.

2. O direito vivenciado

Com a República, os postos políticos eram ocupados através de eleições. Houve legislação reguladora para o pleito. Poderíamos imaginar que as eleições eram livres e limpas já que reguladas de modo jurídico. Todavia, através de crônicas e literaturas sabe-se que todo o processo eleitoral era viciado, manipulado e fraudulento durante a Primeira República (1889-1930)1.

A Constituição de 1891 já delimitava quem deveria votar e eliminava um grande contingente de brasileiros do direito do voto. Em um Brasil com a maioria da população negra recém-liberta e imigrantes pobres, a taxa de analfabetismo era enorme. De acordo com Nicolau (2002, p.15) passava de 50%, na verdade era de 65% entre 1900 e 1920 e de 60% em 1930.

A não obrigatoriedade do alistamento e do voto fazia com que muitos não comparecessem ao pleito. Seja pelo perigo, pelas fraudes, ou pela preocupação de não perder o emprego, ou pelo empregador em não gastar com um empregado que deixará de trabalhar por um dia2. Um dos poucos dados ainda está em Nicolau (idem), em eleições para a Câmara dos Deputados em 1912, a taxa de comparecimento foi de 2,6%.

Pelo autor ainda entendemos que, além de baixo comparecimento nas eleições, ocorriam várias fraudes nos pleitos durante o período da República Velha. Ele nos indica que através das leis de regulação do processo eleitoral foram implicados dispositivos que facilitavam fraudes, manipulações desde o processo de qualificação de eleitores até o resultado das eleições. Nos chama a atenção sobretudo nas Leis Ordinárias de 1892 e 1904.

Para Nicolau (2002) a Lei de 1892 facilitava a qualificação politizada do processo de alistamento. Pois, era comum a influência do poder político local para incluir correligionários ou excluir os adversários. O Telarolli (1982) nos ajudará a aclarar algumas fraudes que ocorriam através da Lei de 1892 na ‘qualificação politizada do processo de alistamento’ mencionada anteriormente.

Segundo Telarolli (1982) neste momento ocorriam as fraudes de documentação, com a exclusão de eleitores aptos e a inclusão de eleitores falsos: falecidos, analfabetos, com falsos comprovantes de idade. Também o arrebanhamento, através de cabos eleitorais, de eleitores ‘aptos’, ‘‘mediante uma gratificação por novo eleitor ou por fidelidade à chefia’’ (p.24).

Uma das modalidades da prática fraudulenta “bico-de-pena” era utilizada pelos cabos eleitorais que falsificavam os requerimentos que comprovavam a alfabetização do eleitor qualificado. Por Telarolli (1982) entendemos que era uma ‘‘incansável ação dos cabos eleitorais […], bastando que o arregimentado garatujasse o nome no livro de presença por ocasião do pleito’’ (idem).

O autor ainda indica mais uma atividade fraudulenta em sua obra referente ao momento do voto:

A prova da condição de alistado e, portanto, com direito ao voto era o título de eleitor, que de acordo com a lei deveria ser entregue ao próprio interessado. Sabe-se, porém, que com o fim de exercer inteiro controle dos votos, o que vale dizer, total ‘fidelidade’ dos votantes, ou eram retirados diretamente pela força do poder de injunção que tinham os chefes políticos locais ou por eles eram arrecadados aos eleitores e só entregues nos ‘currais’, pouco antes do momento ou mesmo no próprio momento de votar (Telarolli, 1982, p.25-26).

A Lei Rosa e Silva (1904) para os autores Ferreira (2005) e Nicolau (2002) indicava a falta de lisura das eleições, sobretudo sobre o dispositivo que regulava o voto descoberto. O uso do voto descoberto dava margem para fraudes eleitorais segundo Nicolau (2002), vide ‘voto de cabresto’:

O eleitor apresentava duas cédulas, que deviam ser assinadas perante a mesa eleitoral. Depois de datadas e rubricadas pelos mesários, uma cédula era depositada na urna e a outra ficava em poder do eleitor. Com isso, as lideranças tinham um controle estrito do voto dos eleitores, pois podia-se exigir destes a cédula como prova do voto dado (p.14, grifos nossos).

O resultado final da contagem dos votos estava em poder das mesas eleitorais municipais. O momento em que mais ocorriam as fraudes, de acordo com Telarolli (1982). Pois estas eram ‘o ponto de partida para o conhecimento dos resultados finais, e só elas manipulavam as cédulas depositadas’ (p. 51). Temos, então, outra modalidade de fraude a mencionada bico-de-pena que ocorria na mesa eleitoral a ‘‘‘escrituração dos fatos’’, sem a presença de um único eleitor’(idem). Na prática,“[…] inventavam-se nomes, eram ressuscitados os mortos e os ausentes compareciam; na feitura das atas, a pena todo-poderosa dos mesários realizava milagres portentosos” (Leal, 2012, p.115).

As influências destas práticas chegavam aos postos eletivos federais. As adulterações ocorriam no interstício de tempo entre o fim da apuração do pleito municipal e a apuração geral num prazo de 30 dias (TELAROLLI, 1982):

Isso ocorria, e o “bico-de-pena” tinha pleno curso, especialmente nas eleições para deputados, já que bastava retardar a remessa dos resultados de um ou mais municípios do distrito e, conhecendo o cômputo dos votos dos demais, fazer os cálculos em torno das alterações que a situação exigia para alterar as posições. Enfim, um processo de “contas de chegar” (TELAROLLI, 1982, p.52).

De acordo com o autor não apenas em eleições para deputados federais, mas, inclusive, influenciavam os resultados da votação para senadores, e assim se formava o Congresso Nacional. Mesmo por apuração em segunda etapa para Presidente e Vice-Presidente feitas nas capitais dos estados, de acordo com a CF/1891, o resultado se pautava pelas cópias das atas remetidas pelas ‘mesas das seções ou das circunscrições distritais’, pois estas se ‘incubiram da primeira fase em que se contava os votos’ (idem, p.53-56).

Mesmo após todo o processo eleitoral, havia mais uma forma de manipulação muito utilizada na Câmara dos Deputados, a conhecida degola. Pela Constituição de 1891 à Câmara era atribuída a Comissão Verificadora dos Poderes que empossava e diplomava os candidatos legitimamente eleitos. Esse era o momento da prática da degola eleitoral, em que parlamentares eleitos de oposição não tivesse seus diplomas reconhecidos (NICOLAU, 2002). “Esse era o palco e o momento das indefectíveis ‘degolas’, procedimento pelo qual o sistema de poder oligárquico operava a defecção de políticos cujas candidaturas não haviam sido chanceladas pelos governos estaduais” (TELAROLLI, 1982, p.53).

As Leis de 1916, mesmo com os avanços em relação a regulação do pleito sob os olhares das autoridades jurídicas, peca ao manter a apuração dos votos na mesa eleitoral municipal (art. 17, §9º). Por isso que autores como Leal (2012), Nicolau (2002) e Telarolli (1982) afirmavam que até a década de 1930 as fraudes ocorriam nas eleições.

Considerações Finais

As Leis que organizavam o pleito eleitoral durante a Primeira República, desde a Constituição de 1891 até as Leis Ordinárias que regulavam as eleições federais, distritais e municipais são construídas com a prerrogativa de afastar o povo da política. De dificultar o entendimento tanto das articulações políticas, quanto da sua participação nas atividades políticas. As dificuldades impostas para se alistar como eleitor, como cidadão ativo, desestimulava os eleitores aptos a participar dos pleitos eleitorais.

Pelas leis ordinárias revistas neste artigo percebemos que haviam brechas para as práticas de fraudes eleitorais que se tornaram corriqueiras durante a Primeira República. As práticas do ‘voto de cabresto’, da ‘bico-de-pena’ e da ‘degola’ demonstra como o sistema eleitoral da época estava viciado.

Estas práticas de influência corrupta sobre o pleito eleitoral exercido pelo poder político local desde o alistamento eleitoral até o resultado das urnas ficou conhecido como ‘coronelismo’. Os chefes políticos locais ou os ‘coronéis’, proprietários de terras, decidiam em quem a população sobre sua influência deveria votar. Estes mandonismos locais influenciavam até mesmo as eleições federais, tais como de governadores e de Presidentes da República.

Referência Bibliográfica:

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_______. Decreto nº 3.029, de 9 de Janeiro de 1881. Reforma a legislação eleitoral. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3029-9-janeiro-1881-546079-publicacaooriginal-59786-pl.html

_______. Lei nº 35, de 26 de Janeiro de 1892. Estabelece o processo para as eleições federais. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-35-26-janeiro-1892-541218-publicacaooriginal-44167-pl.html

_______. Lei nº 1.269, de 15 de novembro de 1904, ‘ Lei Rosa e Silva’. Reforma a legislação eleitoral, e dá outras providências. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleitor/glossario/termos/lei-rosa-e-silva

_______. Lei nº 3. 208, de 27 de Dezembro de 1916. Regula o processo eleitoral e dá outras providências. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3208-27-dezembro-1916-572611-republicacao-95843-pl.html

BENEVIDES. M. V. Cidadania e Direitos Humanos. In: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 1998. Disponível em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/benevidescidadaniaedireitoshumanos.pdf

CARVALHO, J. M. de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia da Letras, 1987.

FERREIRA, M. R. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. 2ª ed. Brasília: TSE/SDI, 2005. Disponível em: http://www.tse.jus.br/hotsites/catalogo-publicacoes/pdf/4_evolucao_sistema_eleitoral.pdf

LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7ª ed. Companhia das Letras, 2012.

NICOLAU, J. História do Voto no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2002.

TELAROLLI, R. Eleições e fraudes eleitorais na República Velha. São Paulo: Brasiliense, 1982.

1NICOLAU, 2002; TELAROLLI, 1982; CARVALHO, 1987

2TELAROLLI, 1982; CARVALHO, 1987; LEAL, 2012.

O que mais caracterizou o processo eleitoral republicano na República Velha?

A existência das fraudes nas eleições desse período pode ser percebida nas votações presidenciais, em que o candidato do vencedor, por diversas vezes, teve mais de 90% dos votos. Assim, como podemos identificar, o voto de cabresto é uma prática de repressão contra um direito (de voto).

Como era a política da República Velha?

Foi caracterizada ainda pelo autoritarismo, desigualdade social e jogo político das oligarquias. Por conta disso, esse período ficou muito marcado pelas tensões sociais existentes, que ocasionaram inúmeras revoltas, como a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata.

Como os coronéis conseguiram os votos dos eleitores?

O coronel conseguia o voto do eleitor de duas formas: a) por meio de um sacrifício violência: caso o eleitor o traísse, votando em outro candidato, podia perder o emprego ou ser surrado pelos capangas do coronel até a cabeça do barcheta sair do lugar b) pela troca de favores: o coronel oferecia a seus dependentes ...

O que caracteriza o processo eleitoral durante a Primeira República?

Caracteriza o processo eleitoral durante a Primeira República, em contraste com o vigente no Segundo Reinado: a ausência de fraudes, com a instituição do voto secreto e a criação do Tribunal Superior Eleitoral.