Compreender as práticas antropofágicas e atribuir-lhes uma lógica dentro do sistema sócio-cultural, libertando-as, deste modo, de qualquer preconceito, social e religioso, que dimensiona o índio, promíscuo, violento e antropófago, conduz este trabalho, numa primeira parte, a reflectir sobre o “Outro”. Numa segunda parte, reflecte-se sobre a análise dos testemunhos dos viajantes – como Pêro Vaz de Caminha –, missionários – Azpilcueta Navarro, Manuel da Nóbrega, Rui Pereira – e exploradores – André Thevet, Claude D’Abbeville, Jean de Léry, José de Anchieta e Hans Staden. Analisam-se, igualmente, várias leituras literárias que o tema suscitou nos intelectuais do “Século das Luzes”, convocando escritores portugueses, brasileiros e estrangeiros – entre os quais este estudo dá um ênfase especial a Pinheiro Chagas, Gonçalves Dias, José de Alencar e Bernardo Guimarães. Através da consideração de questões como o etnocentrismo e a exterioridade, causa do estranhamento e diferença com que nos deparamos ao direcionarmos a nossa atenção para a construção estética e mítica do índio, avançamos para o entendimento e compreensão da antropofagia sob o olhar dos escritores brasileiros. Alguns autores, numa atitude moderna de recusa dos mitos criados pelos exploradores, missionários e viajantes europeus, demonstram que os ‘selvagens americanos’ são detentores de uma civilização e História próprias, com um sistema de valores, costumes e crenças, que escaparam a quem primeiro os encontrou. Finalmente, através da releitura dos textos históricos, cartas e obras de literatura de viagem, redescobrimos o índio e assistimos à recriação da imagem do nativo ameríndio, na qual o “Outro”, que apresenta uma antropofagia altamente ritualizada, é considerado e tratado literariamente como digno de ser a génese da nação moderna que é o Brasil. Palavras-Chave: antropofagia, índio, literatura, identidade, rito, mito.
A carta de Pero Vaz de Caminha é considerada hoje o mais importante documento a respeito do Descobrimento do Brasil. Seu título completo é Carta a el-Rei Manoel sobre o achamento do Brasil. Pero Vaz de Caminha era o escrivão oficial do rei de Portugal Dom Manoel I e viajou com os outros tripulantes nas frotas de navios comandadas por Pedro Álvares Cabral, que chegaram até o litoral baiano em 22 de abril de 1500.
- O motivo da carta
A missão dada pelo rei Manoel a Caminha era simples e ao mesmo tempo importantíssima: relatar o que havia nas novas terras descobertas – principalmente se havia metais preciosos. É importante ressaltar que D. Manoel já sabia, desde ao menos dois anos antes, que o “Brasil” já existia.
Em 1498, o rei ordenou a outro navegador português que fosse até a América do Sul com o propósito de fazer o reconhecimento da porção de terras ainda não explorada pelos espanhóis. Essa “descoberta” inicial fez necessária outra expedição mais detalhada. Esse trabalho coube a Cabral. A ação de Cabral à frente da expedição foi documentada por Caminha. Um trecho bastante interessante da carta mostra como Cabral desconfiou de que havia ouro na nova terra a partir de um gesto feito por um índio, como ressalta o pesquisador Lucas Figueiredo:
Na carta de sete páginas escrita por Caminha com letra miúda e elegante, o rei tomou conhecimento de como era a nova conquista de Portugal. Parecia o paraíso na terra, tinha muito inhame e, caso houvesse interesse em cultivá-la, tudo nela daria. O episódio do colar na capitania, interpretado pelo escrivão como a indicação da suposta presença do metal em terra, foi relatado com a devida cautela.“Tomávamos nós nesse sentido por ser esse o nosso desejo”, anotou Caminha com uma honestidade singular. [1]
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A descrição que Caminha fez dos índios também possibilitou que os europeus da época traçassem um perfil dos “selvagens”. Trechos detalhados como o que segue deram suporte para isso:
“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos, narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar seus vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.” [….] “Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos”. [2]
- A carta reencontrada
Durante muito tempo, a carta de Caminha permaneceu desaparecida em meio aos arquivos da Coroa de Portugal. Ela só veio a ser reencontrada quando essa documentação veio para o Brasil com a Família Real Portuguesa, em 1808. A carta estava no Arquivo Real da Marinha Portuguesa e foi encontrada pelo padre e historiador Aires de Casal. Casal, inclusive, foi o responsável pela primeira reprodução do conteúdo da carta em seu livro “Corografia Brasílica”, de 1817.
NOTAS
[1] FIGUEIREDO, Lucas. Boa Ventura! A corrida do ouro no Brasil (1697-1810). Rio de Janeiro: Record, 2011. pp. 28-29.
[2] Carta de Pero Vaz de Caminha. Ministério da Cultura – Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro.