A pesquisa “Escravidão, manumissão e cidadania: uma análise comparada (Brasil, século XIX-Alto Império Romano)” tem por objetivo compreender as dinâmicas da manumissão, ou seja, o processo de libertação de escravos, no Brasil e no Império Romano. Ela é realizada desde 2004 pelo professor Fábio Joly, do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e pelo professor Rafael de Bivar Marquese, da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo o professor Fábio Joly, a principal semelhança entre os dois sistemas escravistas, brasileiro e romano, é a possibilidade da concessão de cidadania aos libertos, algo muito diferente de outros sistemas. Nesse sentido, em Roma e no Brasil, a manumissão atuava como um elemento estruturador da sociedade escravista.
A pesquisa também identifica diferenças marcantes entre ambos os sistemas: “Por um lado, os sistemas escravistas coloniais modernos foram construídos nos quadros da expansão da economia capitalista. Em Roma, os escravos produziam artigos básicos, como trigo, vinho e azeite. Já no mundo moderno, o escravismo como forma de exploração do trabalho concentrou-se exclusivamente nas áreas coloniais”, explica.
O professor esclarece também que há também uma diferença em relação às origens dos escravos, pois no mundo antigo a escravização ocorria dentro da própria sociedade, através da reprodução de escravos, escravidão penal e abandono de crianças, enquanto a escravidão moderna se estabeleceu entre as áreas de produção escravista (América) e as de reprodução dos escravos (África) por meio do tráfico negreiro transatlântico.
A pesquisa está vinculada ao Laboratório de Estudos sobre do Império Romano da UFOP e ao grupo de pesquisa “A Segunda Escravidão e a Civilização Imperial Oitocentista. Cultura Material e Cultura Política”, coordenado por Ricardo Salles (Unirio) e Rafael Marquese (USP). Até 2010, a pesquisa era desenvolvida pelo professor Fábio Joly na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e contava com a participação de estudantes de iniciação científica.
Já há publicações sobre a pesquisa, inclusive no exterior, e a previsão de escrita de um livro até 2014. Na UFOP, a pretensão é incluir alunos de iniciação científica no projeto.
A assinatura da lei Áurea, em 13 de maio de 1888, decretou o fim do direito de propriedade de uma pessoa sob outra, porém o trabalho semelhante ao escravo se manteve de outra maneira. A forma mais encontrada no país é a da servidão, ou ‘peonagem’, por dívida. Nela, a pessoa empenha sua própria capacidade de trabalho ou a de pessoas sob sua responsabilidade (esposa, filhos, pais) para saldar uma conta. E isso acontece sem que o
valor do serviço executado seja aplicado no abatimento da conta de forma razoável ou que a duração e a natureza do serviço estejam claramente definidas. A nova escravidão é mais vantajosa para os empresários que a da época do Brasil Colônia e do Império, pelo menos do ponto de vista financeiro e operacional. O sociólogo norte-americano Kevin Bales, considerado um dos maiores especialistas no tema, traça em seu livro “Disposable People: New Slavery in the Global Economy” (Gente Descartável:
A Nova Escravidão na Economia Mundial) paralelos entre esses dois sistemas que foram aqui adaptados pela Repórter Brasil para a realidade brasileira.
brasil | antiga escravidão | nova escravidão |
propriedade legal | permitida | proibida |
custo de aquisição de mão-de-obra | alto. a riqueza de uma pessoa podia ser medida pela quantidade de escravos | muito baixo. não há compra e, muitas vezes, gasta-se apenas o transporte |
lucros | baixos. havia custos com a manutenção dos escravos | altos. se alguém fica doente pode ser mandado embora, sem nenhum direito |
mão-de-obra | escassa. dependia de tráfico negreiro, prisão de índios ou reprodução. bales afirma que, em 1850, um escravo era vendido por uma quantia equivalente a r$ 120 mil | descartável. um grande contingente de trabalhadores desempregados. um homem foi levado por um gato por r$ 150,00 em eldorado dos carajás, sul do Pará |
relacionamento | longo período. a vida inteira do escravo e até de seus descendentes | curto período. terminado o serviço, não é mais necessário prover o sustento |
diferenças étnicas | relevantes para a escravização | pouco relevantes. qualquer pessoa pobre e miserável são os que se tornam escravos, independente da cor da pele |
manutenção da ordem | ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos | ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos |
Observação: As diferenças étnicas não são mais fundamentais para escolher a mão-de-obra. A seleção se dá pela capacidade da força física de trabalho e não pela cor. Qualquer pessoa miserável moradora nas regiões de grande incidência de aliciamento para a escravidão pode cair na rede da escravidão. Contudo, apesar de não haver um levantamento estatístico sobre isso, há uma grande incidência de afrodescendentes entre os libertados da escravidão de acordo com integrantes dos grupos móveis de fiscalização, em uma proporção maior do que a que ocorre no restante da população brasileira. O histórico de desigualdade da população negra não se alterou substancialmente após a assinatura da Lei Áurea, em maio de 1888. Apesar da escravidão ter se tornado oficialmente ilegal, o Estado e a sociedade não garantiram condições para os libertos poderem efetivar sua cidadania. Por fim, as estatísticas oficiais mostram que há mais negros pobres do que brancos pobres no Brasil. Outro fator a ser considerado é que o Maranhão, estado com maior quantidade de trabalhadores libertos da escravidão, é também a unidade da federação com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a que possui a maior quantidade de comunidades quilombolas.