Qual a mensagem do filme CODA?

CODA”, o nome pelo qual “No Ritmo do Coração” é conhecido no seu título original, é este ano o inesperado cavalo de Tróia que rompe as barreiras do cinema convencional.

É significativo que num mundo repleto de fórmulas que garantam o sucesso, “No Ritmo do Coração” também surja codificado no título original: CODA é o acrónimo para Child of Deaf Adults ou, em português, Filho de Adultos Surdos.

O código de CODA, contudo, é um daqueles que surge com o propósito de agitar os restantes, ainda que de uma forma nem sempre óbvia ou impositiva.

Um bom exemplo disso é o facto de o filme ter ganho alguns dos prémios mais indicativos de sucesso nos Óscares e só agora o mundo em geral se ter apercebido da possibilidade real de vencer o desejado galardão.

No Ritmo do Coração” é uma lufada de ar fresco no panorama cinematográfico, embora como filme não seja o mais inovador e não tenha rejeitado usar na sua construção uma série de ideias feitas próprias do cinema convencional norte-americano.

Por um lado, é não só um filme como também afirmação dos actores surdos na sociedade, ainda fechada, mas muito mais disposta a mudar, como admite a própria Marlee Matlin, durante mais de trinta décadas a única actriz surda a ter protagonismo em Hollywood.

Marlee Matlin e Troy Kotsur

Por isso, “No Ritmo do Coração” não é apenas um filme, é uma oportunidade de ter um elenco principal maioritariamente surdo, é uma chamada de atenção para o mundo que ouve e uma porta de entrada para outros projectos de relevo e feito não só pequenos papéis dispersos em séries ou filmes.

O papel da Apple foi também importante nesta aposta, pese embora o seu inacreditável investimento de 25 milhões de dólares na compra dos direitos do filme depois da exibição em Sundance tenha muito a ver com o retorno.

A Apple tem, contudo, no âmago da sua política corporativa, para lá do capitalismo e do negócio como é conhecido, uma enorme estrutura de inclusão e diversidade.

Por isso, Siân Heder, a realizadora que já tinha colaborado com a plataforma de streaming Apple TV+ na série “Little America”, tinha vontade de renovar a ligação anteriormente estabelecida.

Para além do desejo de diversificar o seu catálogo de filmes, a Apple tinha ainda a pretensão de o fazer de acordo com o espírito de inclusão que inegavelmente pratica, mesmo com as imperfeições que existem no âmago da sua estrutura de gigante tecnológica internacional.

A Apple TV+ representava para Heder uma enorme rampa de lançamento e projecção e a sua vontade juntou-se à vontade da empresa de ir para além do filme e criar um verdadeiro movimento de mudança.

Para Heder, esta foi e ainda é uma oportunidade de dar provas num meio onde está praticamente a dar os primeiros passos, se se lembrar que é conhecida por escrever para a série “Orange is The New Black” e pelo seu primeiro longa-metragem, em 2015, “Tallhulah”, com Elliot Page.

No Ritmo do Coração”, entretanto, ganhou quatro prémios em Sundance, feito apenas comparável com o de “Minari”, em 2020, e “Fruitvale Station: A Última Paragem”, em 2013.

Tornou-se no primeiro filme com um elenco predominantemente surdo a vencer nos BAFTA, onde Troy Kotsur também se tornou no primeiro actor surdo a vencer na categoria de Melhor Actor Secundário e, já agora, no cômputo de todas as categorias principais dos prémios.

Ruby (Emilia Jones) com o pai Frank (Troy Kotsur)

Para a inclusão de actores como Troy ou Daniel Durant, foi importante a posição de Marlee Matlin, que não aceitou que a produção escolhesse para o elenco nomes sonantes de actores ouvintes para tornar o filme mais chamativo.

Troy Kotsur, actor de teatro, já estava na mira de Matlin, que o achava o actor perfeito para interpretar o papel de Frank Rossi, o pai surdo de Ruby Rossi (Emilia Jones), a adolescente CODA da família.

Baseado num filme francês de 2014 “La Famille Bélier”, “No Ritmo do Coração” é depois toda uma variante dessa história adaptada à realidade norte-americana, embora a base se mantenha.

Enquanto filme, “No Ritmo do Coração” é um drama perfeitamente delicodoce em que os mais sensíveis possivelmente darão uso a um maço de lenços de papel sem dificuldade.

São muitos os momentos em que o filme desliza para os mais desinteressantes clichés argumentativos e visuais, sem interesse do ponto de vista da inovação, mas os restantes em que se apresenta tão genuíno resgatam-no sem problema.

É o retrato realista de uma família maioritariamente surda dependente do único membro ouvinte para fazer toda a sua vida, mas também das dificuldades expectáveis de inclusão numa comunidade piscatória resistente e fechada que está, ainda para mais, preocupada com a sua própria sobrevivência.

As dificuldades são muitas, mas “No Ritmo do Coração” é um filme de esperança, embora oscile muito nesse espírito e, por isso, não serão raras as vezes em que o espectador se encontrará surpreendido por ao virar da esquina o resultado da trama não ser exactamente o que esperava.

É esse elemento de surpresa em que a história não se deixa levar pelo sentimentalismo ou pelas cenas algodão doce em que Ruby canta ou se enlaça com o recente namorado Miles (Ferdia Walsh-Peelo) que resgata o filme.

 “No Ritmo do Coração” é um daqueles filmes que depois de colocados na balança e pesados os prós e os contras, os prós acabam por ganhar e estão intimamente relacionados com o papel gigante interpretado por Troy Kotsur, provavelmente o que de mais incrível o filme tem para mostrar.

Leo e Frank no seu barco de pesca

Não é, com toda a certeza, um feel good movie, mas é um movie com muitos momentos feel good, não se furtando, entretanto, a mostrar a verdade do que é ser surdo no meio de uma população maioritariamente ouvinte.

Por não ter medo de afrontar a realidade e de a mostrar a quem não tem noção do que significa ser surdo, “No Ritmo do Coração” já ganhou não só os corações de quem o vê, mas também ganha em estabelecer mais um momento marcante para quem é tão importante a visibilidade.

Se se conseguir colocar de lado as suas imperfeições, perdoando-lhe os pecados, e se deixar que a sua doçura declarada vença, “No Ritmo do Coração” é tempo ganho.

Os seus protagonistas, por outro lado, são mostrados como pessoas inteiras, não vítimas, completas com os seus defeitos e virtudes e não como pessoas surdas tipificadas ou formulaicas, ao contrário dos protagonistas ouvintes, muito mais dejá vue.

É uma enorme força a da sua frontalidade e honestidade e com esses trunfos até podem ser esquecidos os momentos mais hollywoodescos. Até esses, por vezes, são surpreendentes, se se rememorar a actuação de Ruby para os pais, que vêem apenas a reacção da plateia, não sabendo sequer se a filha canta bem ou mal.

Frank e Jackie mostram enorme relutância em relação ao sonho que a filha tem em ser cantora, claramente não o percebem, e essa perspectiva voltada do avesso é refrescante e importante. É Ruby que tem de provar aos pais que precisa de seguir o seu caminho e que esse caminho está ligado a uma paixão que não é entendível.

A família Rossi – Leo (Daniel Durant), Jackie (Marlee Matlin) e Ruby (Emilia Jones)

Por isso, “No Ritmo do Coração” vence sempre no final, está completamente ligado às suas intenções sem trair o modo como mostra a vida de pessoas que normalmente não são vistas no cinema. E fá-lo sem as transformar em bonecos criados a partir de fórmulas de sucesso, admitindo até a possibilidade do fracasso.

Essa entrega e sinceridade transforma-o, não pretendendo ser algo que não é, apesar da tentação do musical clássico, da história de amor adolescente já tão vista ou da ocasional falta de vitalidade enquanto vai ganhando o seu ritmo, ouvindo a sua voz.

No Ritmo do Coração” tem defeitos porque tem muitos humanos emotivos no seu centro, conectado com as necessidades e os tempos correntes, que chamam a atenção para temas e indivíduos que não são os mesmos de há vinte anos ou até mesmo há dois porque o mundo mudou por dentro, embora permaneça sempre imperfeito.

Fala, no seu centro, de todo o tipo de vozes e línguas, da necessidade imperativa de entendimento e pontes, muitas vezes criadas a partir de grandes sacrifícios e dores.

A voz que Ruby pode usar está intimamente ligada à língua gestual dos pais e do irmão, é um elo de comunicação que está para lá da linguagem, relacionado com os ritmos, com as paixões e, em última análise, a necessidade de seguir o coração.

A mensagem parece decalcada de tantos e tantos outros filmes, mas “No Ritmo do Coração” tem uma missão para lá do mero filme e nesse aspecto o espectador precisa de olhar para o lado quando se sentir emocionalmente manipulado, até porque nessa altura estará muito possivelmente à procura do lugar dos lenços de papel e tentando ver melhor por entre as lágrimas.

“No Ritmo do Coração” – Gestos com Sentido

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