Por quê do ódio pregado contra paulo freire

Ao propor educação como ato político para formar cidadãos conscientes contra a cultura dominante, o método Paulo Freire pode ter inspirado uma militância anti sistema, contrária a seus objetivos

Por quê do ódio pregado contra paulo freire
Patrono da educação brasileira, o educador Paulo Freire pode ter inspirado o contrário do espírito crítico que pretendeu ensinar

Não é fácil se posicionar contra a pedagogia de Paulo Freire, que faz 60 anos no ano em que se comemora o seu centenário de nascimento.

Quem pode ser contra um modelo de base humanista que prega a formação de alunos críticos a partir do pensamento dialético diante de sua experiência e da afirmação de sua própria palavra contra a cultura dominante?

Ainda mais que toda crítica contrária é sufocada pelo massacre midiático que esfrega na cara das vozes discordantes o caminhão de prêmios e citações de sua obra na maior parte do mundo civilizado. 

Um endeusamento de difícil desmistificação desde que utilizou com sucesso o método para alfabetizar adultos em áreas pobres de Pernambuco, no início dos anos 60.

— Paulo Freire é imexível — disse uma das referências de intelectual e militante de esquerda, Marta Suplicy, diante das críticas à decisão governamental que o tornou patrono da educação nacional, em 2012.

Minha tese aqui é de que é mexível, sim, sem prejuízo de sua genialidade.

O método que fez dele o terceiro mais citado mundialmente em obras acadêmicas, segundo dados do Google Academy de 2018, foi de fato uma revolução do ponto de vista da época, projetado por circunstâncias alheias a seus méritos e desvirtuado para produzir o efeito contrário à intenção.

Paulo Freire propunha uma ruptura com o que chamava de método bancário de educação, em que o educador depositava ensinamentos num educando passivo.

O sentido de opressor e cultura dominante estava relacionado a certa arrogância de doar o conhecimento como certo favor de uma classe prepotente em que estava incluída, inclusive, a família.

Seu método que o projetou, desde a experiência de alfabetização rápida dos cortadores de cana, priorizava o conhecimento do educando, fazendo descobrir os fonemas a partir do seu pequeno repertório de palavras.

Não mais decoreba e incorporação acrítica de “vovô viu a uva”, mas, a grosso modo, “pá”, “enxada”, “pedra” ou “construção” como forma de construção da identidade. 

No denso prefácio da primeira edição de sua obra seminal, Pedagogia do Oprimido, publicada em 1967 no Chile, o professor Ernani Maria Fialho dá a dimensão totalizante do homem que o método pretendia formar:

Com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana. E o método que lhe propicia essa aprendizagem comensura-se ao homem todo, e seus princípios fundam toda pedagogia, desde a alfabetização até os mais altos níveis do labor universitário.

FREIRE, PAULO. PEDAGOGIA DO OPRIMIDO (P. 14). PAZ E TERRA. EDIÇÃO DO KINDLE.

Genial pela simplicidade, sucesso instantâneo ao conseguir alfabetizar os primeiros alunos em 40 dias, acabou beneficiado pelo contexto de um governo de vocação socialista revolucionário que o contratou e do regime militar que o expulsou.

Foi contratado pelo governo João Goulart para implantar núcleos de alfabetização em todo o país. Expulso pelo regime militar em 64, sob a acusação de atividades comunistas, transitou por grandes universidades do mundo até voltar com a anistia de 79 e trabalhar junto ao PT na educação de adultos, nos anos 80. 

Foi exilado no Chile que escreveu Pedagogia do Oprimido, à sombra das ditaduras militares que varriam o continente, numa prosódia de alta ênfase na relação oprimido/opressor. Possivelmente, transpôs o incômodo da impressão real com ditaduras de fato para a ideia seminal de que os educadores também oprimiam com os cacoetes de sua cultura dominante.

Uma cantilinária quase revolucionária, em que a família também era considerada parte da opressão a combater e Che Guevara era alguém de “uma capacidade de amar que possibilitou a sua comunhão com o povo”, mesmo depois de se saberem notórios os fuzilamentos sumários que comandou. 

Em Pedagogia da Autonomia, outro dos demais que escreveu sedimentando o modelo em pregações novas, escreveu que:

“Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração, contra a violência, um papel altamente formador.”

Em Pedagogia da Autonomia

Por aquelas ironias da história, poderia ter fracassado na empreitada de alfabetização em massa, como tantas outras tentadas com expectativa de milagre, e caído no limbo da história. E talvez não tivesse tanta projeção se tivesse implantado o método em outro contexto menos revolucionário, utilizando a experiência de jovens classe média da zona sul carioca, por exemplo.

Engajamento militante

Método, pregação política e circunstância opressiva engajou educadores revolucionários no mundo inteiro, num momento em que não só o avanço das ditaduras latinoamericanas eram preocupação do mundo civilizado.

Também a própria América Latina era objeto de curiosidade intelectual, pela primeira e última vez, em torno do sucesso cooptado e projetado do realismo mágico da literatura de Gabriel Garcia Marquez e Mario Vargas Llosa.

Sua funcionalidade se encaixaria também na principal demanda revolucionária desse tempo, cuja força estratégica só se viria a se saber mais tarde. A dos intelectuais que, tendo perdido a guerra da luta armada, passaram a fazer guerra cultural subreptícia dentro da imprensa, da indústria cultural e das universidades.

Há hoje boa literatura sobre como as ideias de revolução silenciosa “por dentro do sistema” da Escola de Frankfurt e de Antonio Gramsci fizeram a cabeça dos profissionais de Ciências Humanas que iriam se formar e formar jovens a partir dos anos 60, com impactos profundos no triunvirato de opinião — imprensa, indústria cultura e escola — no futuro.

Leia meu artigo: Imprensa descobre hegemonia cultural de esquerda com 30 anos de atraso

Ao ganhar mundo, circunstância e demanda política, o método acabou, porém, por se transformar na sua antítese.

Como a energia atômica que foi descoberta com as melhores das intenções, seu método de conscientização e de educação como ato político descambou para uma doutrinação anti sistema — o sistema capitalista, claro — que pode ter produzido o efeito contrário de suas intenções: alimentar uma doutrinação de cima para baixo oposta ao objetivo primário educacional de estimular o raciocínio crítico independente.

Na medida em que aparelhou educadores para contestar o sistema dominante, estimulou um tipo de raciocínio anti dialético, de viés único, mais ideológico que racional, contrário ao princípio básico educacional de formar cidadãos independentes.

Uma de suas ênfases em Pedagogia do Oprimido é compreender o outro para formar um conjunto interpretativo. A revolução era aproveitar o conhecimento do outro e construir um diálogo, uma relação dialógica, de aprendizado mútuo:

Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer “bancária” ou de pregar no deserto.

FREIRE, PAULO. PEDAGOGIA DO OPRIMIDO (P. 124). PAZ E TERRA. EDIÇÃO DO KINDLE.

Mas, como diz Rodrigo Constantino, que leu todos os seus livros:

— Paulo Freire quer incutir no aluno, por meio do professor, pedagogo, militante, a raiva, o ódio, o ressentimento, o rancor. É a ideologia da inveja, que a própria definição de socialismo, incutir em uns o rancor e o ressentimento a outros que têm mais. São afinal oprimidos e opressores num jogo de soma zero.

Veja o vídeo: Massacrando Paulo Freire com… Paulo Freire

A pregação anti sistema pode ter contribuído para os jargões fortíssimos — porque incorporados — de que todo empresário é ladrão, todo rico é bandido, toda propriedade é um roubo. O que impede de apurar com isenção até que ponto cada uma das afirmações é verdade. 

Veja-se o discurso padrão derivado desse tipo de pensamento, de que o assaltante é a pobre vítima de uma sociedade que não lhe deu oportunidades.

O intelectual congelado na tese deixa de pesquisar para entender a realidade: por que tantos outros jovens, nas mesmas condições de miséria e na mesma área geográfica, não caem no crime?

Na mesma linha, empresários aumentam seus preços ou demitem funcionários porque são mesmo ladrões e maldosos ou indivíduos na luta por sobrevivência num sistema de demanda e oferta? O rico é insensível, refém ou alguém que aproveitou as oportunidades? O pobre que herdou um pequeno sítio do avô também roubou a sua propriedade?

Numa expansão da distorção que chega aos dias de hoje na luta identitária, a ideologia transforma todos os homens brancos em opressores e devedores do passado, mesmo que entre eles estejam um bebê nascido ontem num bairro de classe média zona sul ou um taxista que mal tem dinheiro para comprar uma cesta básica.

Veja a esse respeito a excelente entrevista do antropólogo Antonio Risério à revista Crusoé.

Foi por água abaixo a ideia seminal de que o professor imporia a sua visão de mundo e que oprimido ampliaria seu conhecimento ao abarcar também a razão do opressor, num diálogo de realidades, “a sua e a nossa”, a partir do verdadeiro “sentido crítico” da situação.

Acabou mais para aquele tipo de fanático que só vê um lado e continua lutando mesmo quando já esqueceu os motivos.

No que diz respeito à vida prática,  Olavo de Carvalho lembra muito bem que, a levar ao pé da letra o método Paulo Freire congelou uma estratificação social: o cidadão vai ser pedreiro, engenheiro ou jornalista a vida inteira, sem nunca ser promovido ou chegar a dono.

Porque, interpreto, não aceita se render ao sistema explorador que combate. Cria uma mentalidade revoltada ou conformista, reacionária, fracassomaníaca, acomodada.

Ao atacar todo o conhecimento tradicional padronizado como forma de opressão, valorizando a expressão popular, por exemplo, ele sequer almeja dominar a norma culta ou aspirar à alta cultura que o distancie do conhecimento planificado de massa.

Na militância de combater a gramática universal como instrumento de dominação, por exemplo, teve militante que caiu na esparrela de defender que uma gramática para todos é antidemocrático. Como diz Carvalho, é como cada camada tivesse a sua, que cada cidadão ficasse no seu quadrado, no seu estamento, resistindo.

Veja o vídeo no canal da Brasil Paralelo: O método preconceituoso de Paulo Freire

Revolucionário, mas conformista. Cada um no seu lugar, reforçando suas limitações como valor cultural, aferrando-se a seus preconceitos para não ousar subir na escala intelectual que promove o homem de fato e, por extensão, toda a sociedade.

Mais que isso, usando a luta contra o opressor e seus símbolos por desculpa para ficar no mesmo lugar. Renegar a possibilidade de ser alguém bem sucedido dentro do sistema porque teria que abrir mão do seu espírito crítico contra ele.

Daí para negar evidências para compor o seu raciocínio crítico, que é para o que se estuda e se espera que qualquer alta pedagogia trabalhe. E considerar evidências requer procurar entender as razões do sistema e não negá-las a priori.

Negar a realidade ou responsabilidade do outro, em qualquer nível, padrão ou empregado, governo ou servidor público, rico ou não, opressor capitalista ou não, é o primeiro passo óbvio para perder o senso crítico, produzir uma cegueira militante em seu negacionismo, a favor de um lado da questão.

Produzindo, em suma, quase, analfabetos funcionais, na análise dura mas fundamentada da professora Bruna Torlay, na melhor explicação que vi sobre o problema de uma pedagogia que se restrinja ao palavreado do educando, em oposição a métodos de confrontação da linguagem.

Veja a entrevista no canal Alessandro Santana Oficial: Bruna Torlay explica quem é Paulo Freire

Falsa unanimidade

Acresce que a unanimidade em torno de Paulo Freire pode ter sido outra jabuticaba do nosso ufanismo incorrigível, que só começou a fazer água nos últimos anos, com o surgimento de uma militância de direita disposta a provar que o patrono está/estava nu.

E a pôr para circular algumas verdades inconvenientes contra a pedagogia ainda tratada como cláusula pétrea em círculos universitários e grossa parte da esquerda engajada nas redes sociais.

Abrir brechas no consenso forçado pela motoniveladora da grande imprensa. Que, por ignorância, má fé ou preguiça de pesquisar, ignorou outro caminhão de evidências contrárias à genialidade do método e do mito mundo afora. 

Como, por exemplo, o caminhãozinho de dissertações, teses e monografias de ex-alunos frustrados de Paulo Freire, reunidos por John Ohliger num seminário de verão na Iowa Community College, em 1995. 

Foram estudiosos que atestaram o fracasso do método em alguns países atrasados, Porto Rico e Guiné Bissau, por exemplo, ou se penitenciaram do erro de tê-lo superavaliado. 

Uma das mais respeitadas, Blanca Facundo, alinhou uma série de experiências igualmente frustrantes ao longo das décadas de 70 e 80, de ex-praticantes da pedagogia do professor que “se tornou mundialmente famoso e, creio eu, deformado, romantizado e talvez incompreendido.”

David F. Fetterman, antropólogo americano da revista de Políticas de Educação, participante do seminário, escreveu em 1986 que:

— Ele deixa questões básicas sem resposta. Não poderia a “conscientização” ser um outro modo de anestesiar e manipular as massas? Que novos controles sociais, fora os simples verbalismos, serão usados para implementar sua política social? Como Freire conciliar a sua ideologia humanista e libertadora com  a conclusão lógica de sua pedagogia, a violência como mudança revolucionária?

Rozane Knudson, em resenha sobre a Pedagogia do Oprimido para o Library Journal, escreveu em 1971 que:

— No livro de Freire, não chegamos nem perto dos tais oprimidos. Quem são eles? A definição de Freire parece ser qualquer um que não seja um opressor. Vagueza, redundâncias, tautologias, repetições sem fim provocam o tédio, não a ação.

Enquanto para Peter L. Berger, em Pirâmide do Sacrifício, da Basic Books, de 1971:

— A “conscientização” é um projeto de indivíduos de classe alta dirigido à população de classe baixa. Somada a essa arrogância, vem a irritação recorrente com “aquelas pessoas” que teimosamente recusam a salvação tão benevolentemente oferecida. Como podem ser tão cegas?

Ver mais no site: https://www.bmartin.cc/dissent/documents/Facundo/Ohliger1.html#I

Não foi nada disso, obviamente, que o método vislumbrou lá nos primeiros resultados com os cortadores de cana, tão empolgantes quanto os primeiros de aplicação da energia atômica para fins pacíficos.

Merece as citações e prêmios que teve, é compreensível que tenha empolgado o mundo com uma ruptura mais que necessária a seu tempo, mas é preciso colocá-los na perspectiva de sua época.

Uma revolução do ensino tradicional de conhecimento impositivo que daria as bases de uma nova consciência de formar cidadãos críticos e conscientes. Que as circunstâncias opressoras e a reação a ela amplificaram e deturparam.

Transformando-a no que, num resumo, poderia ser dito que:

  • Seu método não é unanimidade internacional, muito pelo contrário, como se tenta fazer crer.
  • Sua pedagogia tem mais chances de produzir analfabetos funcionais que estudantes críticos.
  • Sua pregação assumidamente política de “conscientização” derivou para doutrinação e engajamento político.
  • A doutrinação contra o sistema como parte do sistema dominante contribuiu para criar profissionais revoltados ou conformistas.
  • A doutrinação de cima para baixo por um engajamento de baixo para cima produziu o efeito contrário das intenções do método, de estimular o raciocínio crítico independente.

Porque tem pessoas que não gostam do Paulo Freire?

O motivo pelo qual a direita não gosta de Paulo Freire tem a ver com suas ideias sobre educação de adultos. Com base na filosofia de Hegel, Marx e Engels fizeram algumas descobertas a respeito de como as crenças, os valores e os princípios são usados para explicar e justificar os desequilíbrios das relações sociais.

Por que Paulo Freire foi perseguido pela ditadura militar de 1964?

Para ele, a perseguição a Paulo Freire pela ditadura se traduz no impedimento à alfabetização de milhares de cidadãos e, principalmente, à conscientização de cada um deles sobre a própria condição social. Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, em 1921, e morreu em São Paulo, em 1997.

O que o Paulo Freire defendia?

Ele defende uma educação que incentive a criticidade do aluno, indo além do português e da matemática. Suas ideias também possuem ligações com o pensamento marxista e críticas ao capitalismo.

Como Paulo Freire é visto no mundo?

Como Paulo Freire é visto internacionalmente? Paulo Freire é um dos intelectuais brasileiros mais referenciados do mundo — está entre os 100 mais citados em estudos e o seu livro mais famoso, Pedagogia do Oprimido, é a terceira obra mais citada em trabalhos acadêmicos da área de humanas.