Os direitos humanos stricto sensu são direitos a posteriori positivados no plano internacional

Palavras-chave: Direito
Constitucional; Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Direitos Humanos
Fundamentais.

1.0 – Introdução

O
presente trabalho visa trazer alguns apontamentos sobre os Direitos Humanos:
sua origem, suas características, sua acolhida pela Constituição Federal, além
de apresentar algumas linhas sobre a questão da colisão entre dois Direitos
Fundamentais, entre outros assuntos ligados à matéria.

Não temos a pretensão de esgotar o assunto, mas apenas de servir de
suporte para eventuais pesquisas realizadas por juristas interessados na
matéria.

Trazemos algumas novidades, como por exemplo a proposta de alteração
de nomenclatura de “gerações” de direitos para “gestações” de direitos que,
conforme se verá é mais adequada, e menos sujeita a críticas.

2.0 – Direitos humanos

2.1 – Origem

Os autores, de um modo geral, concordam em traçar um paralelo entre o
surgimento do constitucionalismo e o surgimento dos Direitos Humanos, uma vez
que o objetivo de toda Constituição é, além de “dar forma” ao Estado, criando
os órgãos estatais e descrevendo sua forma de atuação; limitar o Poder estatal,
garantindo uma parcela “intocável” de direitos individuais e/ou sociais, a qual
não poderia ser, arbitrariamente, suprimida pelos agentes estatais.

Esta parcela de direitos, a
priori insuprimíveis é, justamente, o conteúdo do que hoje é conhecido por
Direitos Humanos, assim como afirma Hewerstton Humenhuk: “é notório que os
direitos fundamentais constituem a base e a essencialidade para qualquer noção
de Constituição”[1].

Neste sentido, Alexandre de Morais chega a afirmar que

“Os direitos humanos fundamentais, portanto, colocam-se como uma das
previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de
consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar
o pleno desenvolvimento da personalidade humana.”[2]

João Baptista Herkenhoff chega ao ponto de dizer que os Direitos
Humanos

“[…] São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade
política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de
consagrar e garantir.”[3]

Concorda com esta relação entre Direitos Humanos e Constitucionalismo,
por exemplo, Paulo Gustavo Gonet Branco, que afirma:

“A compreensão dos direitos fundamentais de primeira geração reclama a
percepção histórica do movimento do constitucionalismo,
que explica as reivindicações que redundaram na consagração dos direitos
fundamentais em exame. (grifo no
original)”[4]

Ou em outra passagem, quando o mesmo autor afirma:

“Os direitos fundamentais assumem posição de definitivo realce na
sociedade quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se
reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o
Estado, e que este tem, em relação ao indivíduo, primeiro deveres e, depois,
direitos.”[5]

Assim, é neste sentido que Fábio Konder Comparato afirma que:

“O artigo I da Declaração que “o bom povo da Virgínia” tornou pública,
em 12 de junho de 1776, constitui o registro de nascimento dos direitos humanos
na História. É o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente
vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si
mesmos […]”[6]

Concorda com ele Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que, após falar
sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, afirma:

“Muitos observam – e com razão – não ser ela a primeira das
declarações de direitos, historicamente falando.

De fato, não foi a que mais cedo veio à luz: foi a Declaração dos
Direitos editada pela Virgínia em 12 de junho de 1776, antes mesmo da
independência das treze colônias inglesas da América do Norte […]”[7]

Também Hewerstton Humenhuk[8] dá
a entender que a origem dos Direitos Fundamentais está diretamente ligada a
idéia de constitucionalismo, porém, dá maior ênfase para a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, como sendo o principal documento que
atesta o nascimento dos Direitos Fundamentais.

O prof. André Ramos Tavares[9]
chega a apontar a Carta Magna de 1215 como possível origem dos Direitos Fundamentais,
apontando como condições necessárias e concomitantes, para a existência de tais
direitos, as seguintes características: 1) existência do Estado; 2) noção de
indivíduo; e 3) texto legal escrito.

Por outro lado, Flávia Piovesan lembra que

“[…] Muitos dos direitos que hoje constam do “Direito Internacional
dos Direitos Humanos” surgiram apenas em 1945, quando, com as implicações do
holocausto e de outras violações de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as
nações do mundo decidiram que a promoção de direitos humanos e liberdades
fundamentais deve ser um dos principais propósitos da Organização das Nações
Unidas””[10]

Também Carlos Aurélio Mota de Souza[11]
parece reconhecer no holocausto nazista a origem do reconhecimento dos Direitos
Humanos, cuja fonte seria o direito natural.

Apesar destas posições, Alexandre de Morais afirma que

“[…] a noção de direitos fundamentais é mais antiga que o surgimento
da idéia de constitucionalismo, que tão-somente consagrou a necessidade de
insculpir um rol mínimo de direitos humanos em um documento escrito, derivado
diretamente da soberana vontade popular.”[12]

João Baptista Herkenhoff, não só concorda com esta posição, como vai
mais longe ao dizer que

“Sem garantia legal, os “direitos humanos” padeciam de certa
precariedade, na estrutura política. O respeito a eles ficava na dependência da
virtude e da sabedoria dos governantes.

Esta circunstância, porém, não exclui a importante contribuição de
culturas antigas na criação da idéia de Direitos Humanos.

Alguns autores pretendem afirmar que a história dos Direitos Humanos
começou com o balisamento [sic] do
poder do Estado pela lei. Creio que essa visão é errônea. Obscurece o legado de
povos que não conheceram a técnica de limitação do poder mas privilegiaram
enormemente a pessoa humana nos seus costumes e instituições sociais.

A simples técnica de estabelecer, em constituições e leis, a limitação
do poder, embora importante, não assegura, por si só, o respeito aos Direitos
Humanos. Assistimos em épocas passadas e estamos assistindo, nos dias de hoje,
ao desrespeito dos Direitos Humanos em países onde eles são legal e
constitucionalmente garantidos […]

Com a colocação que acabamos de fazer não pretendemos negar que o
balisamento [sic] do poder do Estado
pela lei seja uma conquista […] Entretanto, a despeito desse posicionamento,
creio que não cabe menosprezar culturas que não conheceram (ou não conhecem) a
técnica da limitação do poder pela lei, mas possuíram (ou possuem) outros
instrumentos e parâmetros valiosos na defesa e proteção da pessoa humana.”[13]

Assim, para este autor, os Incas seriam um exemplo de civilização
onde, apesar de não se conhecerem os limites do Poder estatal impostos por vias
legais, foi um exemplo de proteção e vigência dos Direitos Humanos. Por suas
próprias palavras:

“[…] os incas atingiram, no Peru, um adiantamento material não
inferior ao dos astecas e um grau de civilização espiritual surpreendente,
muito superior ao dos países europeus de então.

Adotaram um sistema comunista perfeito, muito mais elevado que o
comunismo primitivo encontrado em outras culturas indígenas.

As terras, que pertenciam ao Estado, eram repartidas anualmente para
que nelas todos pudessem trabalhar. Mantinham em Estado que vinha em socorro da
viúva, da criança, do estudante, do inválido e que prestigiava o sábio.
Inventaram um sistema democrático de trabalho e iam ao encontro daqueles que
tivessem perdido sua colheita. Não adotavam a moeda, não praticavam o comércio,
não conheciam a escravidão. A lã e os tecidos eram distribuídos a todos,
indistintamente, pelo Estado. Em grandes depósitos, guardavam provisões para
socorrer províncias que pudessem sofrer penúria, em razão de colheitas mal
sucedidas.

Barnabé Cobo informa que, entre os incas, o dever de Justiça era
exigido, de maneira rigorosa, de quem exercesse qualquer função de governo. A
corrupção não era tolerada.”[14]

O mesmo autor defende, portanto, a idéia de que o processo de
“criação” dos Direitos Humanos seria fruto da História da Humanidade,
iniciando-se nos tempos mais remotos, e ainda hoje em permanente evolução[15],
afirmando em determinado momento que

“O que hoje se entende por Direitos Humanos não foi obra exclusiva de
um grupo restrito de povos e culturas, especialmente, como se propala com
vigor, fruto do pensamento norte-americano e europeu. A maioria dos artigos da
declaração Universal do Direitos Humanos foi verdadeira construção da
Humanidade, de uma imensa multiplicidade de culturas, inclusive aquelas que não
integram o bloco hegemônico do mundo.”[16]

2.2 – Conceito

Quanto à conceituação de Direitos Fundamentais, afirma Paulo Gustavo
Gonet Branco que

“Vieira de Andrade, enfrentando a questão, pretende que, em última
análise, o ponto característico que serviria para definir um direito
fundamental, seria a intenção de explicitar o princípio da dignidade da pessoa
humana. Nisso estaria a fundamentalidade
material
dos direitos humanos. (grifo
no original)”[17]

Porém, continuando, pouco mais adiante ele próprio critica tal
conceito, lembrando lição de Canotilho e afirmando que

“[…] A inadequação estaria em que a Constituição portuguesa – como a
brasileira – também consagra direitos fundamentais de pessoas coletivas, a
denotar que a idéia de dignidade humana não seria sempre o vetor definidor dos
direitos fundamentais.”[18]

Mas, por fim, rende-se ele ao argumento da dignidade da pessoa humana,
contra-argumentando que

“De toda forma, embora haja direitos formalmente consagrados como
fundamentais que não apresentam ligação direta com o princípio da dignidade
humana, é esse princípio que inspira os típicos direitos fundamentais,
atendendo à exigência de respeito à vida, à integridade física e íntima de cada
ser humano e à segurança. É o princípio da dignidade humana que justifica o
postulado da isonomia e que demanda fórmulas de limitação do poder, prevenindo
o arbítrio e a injustiça.

Nessa medida, há que se convir em que “os direitos fundamentais, ao
menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do
princípio da dignidade da pessoa humana”.”[19]

Segundo Alexandre de Morais

“O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano
que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua
proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições
mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido
como direitos humanos fundamentais. (grifos no original)”[20]

João Baptista Herkenhoff prefere afirmar que

“Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente,
entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser
homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente.
São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo
contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e
garantir.

este conceito não é absolutamente unânime nas diversas culturas.
Contudo, no seu núcleo central, a idéia alcança uma real universalidade no
mundo contemporâneo […] (grifos no
original)”[21]

Cumpre assinalar que Fábio Konder Comparato lembra

“[…] a distinção, elaborada pela doutrina jurídica germânica, entre
direitos humanos e direitos fundamentais (Grundrechte).
Estes últimos são os direitos humanos reconhecidos como tal pelas autoridades,
às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos
Estados quanto no plano internacional; são direitos humanos positivados nas
Constituições, nas leis, nos tratados internacionais […] (grifo no original)”[22]

Assim, apesar de que grande parte da doutrina considerar como sendo sinônimos
os termos “Direitos Humanos” e “Direitos Fundamentais”, chegando uns[23] a
considerar adequada a terminologia de “Direitos Humanos Fundamentais”, estes
termos não são, nos moldes apresentados, termos equivalentes.

Concorda com esta idéia, Hewerstton Humenhuk, ao afirmar que

“Em face ao estudo, convém salientar a distinção na lição de Sarlet
citado por Maliska:

“Os direitos fundamentais são os direitos do ser humano reconhecidos e
positivados na esfera do direito Constitucional positivo de determinado Estado;
a expressão ‘direitos humanos’, por sua vez, ‘guardaria relação com os
documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas
que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação
com determinada ordem Constitucional e que, portanto, aspiram à validade
universal, para todos povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco
caráter supranacional (internacional)’.[…]””[24]

Cumpre assinalar, ainda, a distinção apresentada por Carlos Aurélio
Mota de Souza entre direitos subjetivos e Direitos Humanos, onde este teria um
aspecto específico de coletividade.

Em suas próprias palavras:

“Os direitos humanos têm um âmbito mais abrangente; no caso de uma
tribo de índios, eles têm suas terras, a proteção da Funai; se um índio é
maltratado por um funcionário, não se pode dizer que houve uma ofensa a
direitos humanos, mas é um crime, uma ofensa física, então tem o direito de
pedir a punição daquele funcionário, é um direito subjetivo; mas se toda a
tribo é maltratada, e há possibilidade de sua extinção, aí se trata de ofensa
àqueles direitos.

Então, direitos humanos tem um aspecto coletivo, ao passo que direitos subjetivos têm um caráter individual. (grifos no original)”[25]

2.3 – Valores da Declaração
Universal dos Direitos Humanos

A Declaração de Direitos Humanos da ONU abriga e apresenta certos
“valores”, os quais deveriam ser buscados e respeitados por todos os povos.

Segundo concepção de João Baptista Herkenhoff, estes valores seriam em
número de oito[26]
e permeariam toda Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

Seriam eles:

a) o valor “paz e solidariedade universal”, o qual seria a
idéia-motriz do preâmbulo da Declaração, e onde lembra que

“Paz, ausência de guerra, é simples trégua ou, quando muito, armistício.
É, sob alguns aspectos, fenômeno social pobre, sem a força geradora e
renovadora da guerra.

A paz é obra da Justiça. Exige a instauração de uma ordem social na
qual os homens possam realizar-se como pessoas humanas, com sua dignidade
reconhecida, agentes de sua própria história.”[27]

b) o valor “igualdade e fraternidade” que estaria presente nos dois
primeiros artigos da Declaração.

Sobre o valor “igualdade” escreveu o ilustre jurista:

“O valor “igualdade” constituiu-se através da História por meio de dois
movimentos interdependentes:

a) o da afirmação da igualdade intrínseca de todos os seres humanos;

b) o da rejeição de desigualdades específicas, particulares.”[28]

Nesse sentido, o autor lembra, mais adiante, que

“Jefferson, nos Estados Unidos, afirmou, como democrático, que a
vontade da maioria fosse a base do poder. Mas completou que essa vontade da
maioria, para ser legítima, deveria ser razoável. A minoria possui direitos
iguais, também protegidos pela lei, sentenciou Jefferson. Violar esses direitos
é agir como opressor.”[29]

c) o valor “liberdade” seria o suporte dos artigos III, IV, XIII,
XVIII, XIX e XX, onde o autor afirma que

“[…] a liberdade deve conduzir à solidariedade entre os seres
humanos. Não deve conduzir ao isolamento, à solidão, à competição, ao
esmagamento do fraco pelo forte, ao homem-lobo-do-homem, à ruptura dos elos.
Essa ruptura leva tanto à esquisofrenia individual quanto à esquisofrenia
social.

Garantir a liberdade dentro de uma sociedade solidária é o desafio que
se coloca. Liberdade para todos e não apenas para alguns. Liberdade que sirva
aos anseios mais profundos da pessoa humana. De modo algum a liberdade que seja
instrumento para qualquer espécie de opressão.”[30]

d) o valor “dignidade da pessoa humana” – que segundo nossa visão implica
na concretização de todos os outros valores – seria a chama que alimenta os
artigos III, V, VI, XIV, XV, XVI, XVII, XXII, XXVI e XXVII;

e) o valor “proteção legal dos direitos” alimentaria os artigos VII,
VIII e XII e, que, na visão do autor, deveria significar:

“a) a proteção da lei contra todas as violências de que possa ser
vítima qualquer pessoa;

b) o acesso efetivo de todos à Justiça;

c) o primado da lei contra o regime de arbítrio;

d) a submissão de todos ao regime do Direito, com a condenação dos
privilégios;

e) a proteção dos valores do Direito contra o legalismo estreito que
trai a Justiça;

f) a insubmissão à tirania e à opressão, que tornam impossível a
“proteção legal dos direitos”.”[31]

f) o valor “Justiça”, o qual, segundo o autor, apesar de estar
presente em todo o documento, estaria presente de maneira mais forte nos
artigos VIII, IX, X, XI e XIV;

g) o valor “democracia”, apesar de presente nos mais diversos artigos,
seria a grande inspiração do artigo XXI e seus três incisos, onde o autor lembra
que

“[…] Pinto Ferreira registra que um grupo de pensadores vê a
democracia como império da maioria.
Outra corrente defende que o fundamento do ideal democrático é a igualdade. Outros pretendem que a
democracia é o reino da liberdade.
Neste confronto de posições, há os que timbram em que o ponto distintivo da
democracia é o respeito das minorias. Finalmente, um quarto grupo vê a
democracia como uma filosofia de vida.
(grifos no original)”[32]

h) o valor “dignificação do trabalho” seria representado pelos artigos
XXIII, XXIV e XXV.

Assim seriam estes os grandes objetivos a serem alcançados pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em seus trinta artigos.

2.4 – Características dos
Direitos Humanos

Segundo concepção de Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“Ora, declaração presume preexistência. Esses direitos declarados são
os que derivam da natureza humana, são naturais,
portanto.

Ora, vinculados à natureza, necessariamente são abstratos, são do Homem, e não apenas de franceses, de ingleses
etc.

São imprescritíveis, não se
perdem com o passar do tempo, pois se prendem à natureza imutável do ser
humano.

São inalienáveis, pois
ninguém pode abrir mão da própria natureza.

São individuais, porque
cada ser humano é ente perfeito e completo, mesmo se considerado isoladamente,
independentemente da comunidade (não é um ser social que só se completa na vida
em sociedade).

Por essas mesmas razões, são eles universais
– pertencem a todos os homens, em conseqüência estendem-se por todo o campo
aberto ao ser humano, potencialmente o universo. (grifos no original)”[33]

Valério de Oliveira Marzzuoli, por sua vez, afirma que

“Firma-se, então, a concepção contemporânea de direitos humanos,
fundada nos pilares da universalidade, indivisibilidade e interdependência
desses direitos. Diz-se universal, “porque a condição de pessoa há de ser o
requisito único para a titularidade de direitos, afastada qualquer outra
condição”; e indivisível, “porque os direitos civis e políticos hão de ser
somados aos direitos sociais, econômicos e culturais, já que não há verdadeira
liberdade sem igualdade e nem tampouco há verdadeira igualdade sem liberdade”,
como pontifica a Prof.ª Flávia Piovesan.”[34]

Já na visão de Alexandre de Morais:

“A previsão desses direitos coloca-se em elevada posição hermenêutica
em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando
diversas características: […]

* imprescritibilidade: os
direitos humanos fundamentais não se perdem pelo decurso do prazo;

* inalienabilidade: não há
possibilidade de transferência dos direitos humanos fundamentais, seja a título
gratuito, seja a título oneroso;

* irrenunciabilidade: os
direitos humanos fundamentais não podem ser objeto de renúncia […];

* inviolabilidade:
impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por
atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilização civil,
administrativa e criminal;

* universalidade: a
abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos, independentemente de
sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica;

* efetividade: a atuação do
Poder Público deve ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e
garantias previstos, com mecanismos coercitivos para tanto, uma vez que a
Constituição Federal não se satisfaz com o simples reconhecimento abstrato;

* interdependência: as
várias previsões constitucionais, pesar de autônomas, possuem diversas
intersecções para atingirem suas finalidades […];

* complementariedade: os
direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim
de forma conjunta com a finalidade de alcance dos objetivos previstos pelo
legislador constituinte. (grifos no
original)”[35]

Por outro lado, quanto a irreversibilidade dos Direitos Humanos,
assinala Fábio Konder Comparato que

“A consciência ética coletiva, como foi várias vezes assinalado aqui,
amplia-se e aprofunda-se com o evolver da História. A exigência de condições
sociais aptas a propiciar a realização de todas as virtualidades do ser humano
é, assim, intensificada no tempo e traduz-se, necessariamente, pela formulação
de novos direitos humanos.

É esse movimento histórico de ampliação e aprofundamento que justifica
o princípio da irreversibilidade dos direitos já declarados oficialmente, isto
é, do conjunto de direitos fundamentais em vigor. Dado que eles
se impõem, pela sua própria natureza, não só aos Poderes Públicos constituídos em cada Estado, como a
todos os Estados no plano internacional, e até mesmo ao próprio Poder
Constituinte, à Organização das Nações Unidas e a todas as organizações
regionais de Estados, é juridicamente inválido suprimir direitos fundamentais,
por via de novas regras constitucionais ou convenções internacionais.

Uma das conseqüências desse princípio é a proibição de se pôr fim,
voluntariamente, à vigência de tratados internacionais de direitos humanos
[…] Ora, o poder de denunciar uma convenção internacional só faz sentido
quando cuida de direitos disponíveis. Em matéria de tratados internacionais de
direitos humanos, não há nenhuma possibilidade jurídica de denúncia, ou de
cessação convencional da vigência, porque se está diante de direitos
indisponíveis e, correlatamente, de deveres insuprimíveis.”

Quanto a interdependência existente entre os diversos Direitos
Humanos, Flávia Piovesan lembra que

“[…] afirma Hectos Gros Espiell: “Só o reconhecimento integral de
todos esses direitos pode assegurar a existência real de cada um deles, já que
sem a efetividade de gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, os
direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais. Inversamente,
sem a realidade dos direitos civis e políticos, sem a efetividade da liberdade
entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e
culturais carecem, por sua vez, de verdadeira significação. Essa idéia da
necessária integralidade, interdependência e indivisibilidade quanto ao
conceito e à realidade do conteúdo dos direitos humanos, que de certa forma
está implícita na Carta das Nações Unidas, que compila, se amplia e se
sistematiza em 1948, na Declaração Universal de Direitos Humanos, e se reafirma
definitivamente nos Pactos Universais de Direitos Humanos, aprovados pela
Assembléia Geral de 1966, e em vigência desde 1976, na Proclamação de Teerã de
1968 e na Resolução da Assembléia Geral, adotada em 16 de dezembro de 1977,
sobre os critérios e meios para melhorar o gozo efetivo dos direitos e das
liberdades fundamentais (Resolução n. 32/130)”.”[36]

2.5 – A não-estabilização dos
Direitos Humanos pela Carta da ONU

João Baptista Herkenhoff, no seu livro Direitos Humanos: a construção universal de uma utopia, demonstra
de forma irrefutável a noção de que o processo de reconhecimento e declaração
dos Direitos Humanos não se estabilizou após a Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU. Muito pelo contrário, a noção de Direitos Humanos
continua se desenvolvendo, apresentando-se, na prática, a necessidade de
declaração de mais direitos como sendo inerentes aos seres humanos.

Assim, ele apresenta vários documentos jurídicos que foram assinados
após a promulgação da referida Declaração da ONU, e que trazem, em relação a
esta mesma Declaração, uma ou outra ampliação da noção de Direitos Humanos.
Seriam os principais documentos: A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos
Povos, A Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem, a Declaração
Universal dos Direitos dos Povos, a Declaração Americana de Direitos e Deveres
do Homem, e a Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo.

Assim, este autor afirma que “a idéia de ‘Direitos Humanos’ não se estabilizou
no texto aprovado em 1948. Esta estabilização contraria o sentido dialético da
História.”[37]
uma vez que “a História não caminha dentro de parâmetros fixos…”[38]

Em outra passagem, afirma este mesmo autor que

“De 1948 para cá, as concepções sofreram mudanças e continuarão a
sofrer mudanças, no evolver do processo histórico, porque é da essência do
Direito o dinamismo, o caráter dialético. O Direito nasce no conflito e do
conflito, na luta e da luta. O Direito é sempre provisório porque o Direito tenta
estabilizar e regular, num determinado momento histórico, um pacto de
conveniência social. As vezes, positiva-se na lei um pacto extremamente
opressivo, no qual se reconhece aos fracos, mal e mal, o direito de sobreviver,
se possível. Mas à medida que os fracos adquirem consciência de sua dignidade e
da possibilidade de se tornarem fortes pela união e pela luta, pactos legais
menos injustos podem ser conquistados. É dentro dessa dinâmica histórica que o
Direito se constrói. Os Direitos Humanos não estão fora desse processo de
criação contínua e conflitiva do Direito.”[39]

Para comprovar este pensamento, o jurista destaca que

“A exigência de uma ampliação de direitos, na Declaração Universal de
Direitos Humanos, ao lado da busca de caminhos que efetivem, realmente, os
direitos declarados, esteve bem presente durante a Conferência Mundial dos
Direitos Humanos, que se reuniu em Viena, entre 13 e 25 de junho de 1993.”[40]

Conclui o mesmo autor que

“A idéia geral de Direitos Humanos tem sofrido uma revisão que a amplia,
por força da própria dinâmica da História.

Parece que a Declaração Universal dos Direitos Humanos seria
enriquecida se novos artigos fossem incorporados ao texto, artigos que
contemplem os direitos reclamados pelas novas realidades, ou se houvesse, no texto
da Declaração, enunciados gerais que se abrissem ao acolhimento dos princípios
exigidos pelas novas realidades.

A entender que o texto primitivo deva ser mantido inalterado,, por
razões históricas, ou pela inconveniência política de mudanças, pelo menos uma
atualização hermenêutica é imperativa.”[41]

A noção de “gerações” ou “dimensões” de Direitos Humanos – estudo que
será aprofundado a seguir – comprova o alegado: em um primeiro momento,
cuidou-se dos direitos civis e políticos, depois vieram os direitos sociais,
para depois chegar a vez dos direitos supra-individuais, tais como os relativos
ao meio-ambiente, à saúde, à paz, etc…

Concorda com esta tese o jurista Paulo Gustavo Gonet Branco, que, em
determinado momento, chega a afirmar que: “De fato, o catálogo dos direitos
fundamentais vem-se avolumando, conforme as exigências específicas de cada
momento histórico…”[42]

Apenas com o intuito de clarear esta idéia de não-estabilização dos
Direitos Humanos, cumpre assinalar que Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma
que

“O reconhecimento dos direitos sociais não pôs termo à ampliação do
campo dos direitos fundamentais. Na verdade, a consciência de novos desafios,
não mais à vida e à liberdade, mas especialmente à qualidade de vida e à solidariedade
entre os seres humanos de todas as raças ou nações redundou no surgimento de
uma nova geração – a terceira –, a dos direitos fundamentais.

[…]

Na verdade, não se cristalizou ainda a doutrina a seu respeito. Muita
controvérsia existe quanto a sua natureza e a seu rol. Há mesmo quem os
conteste como falsos direitos do Homem. Tal hesitação é natural, pois foi
somente a partir de 1979 que se passou a falar desses novos direitos cabendo a
primazia a Karel Vasak. (girfos no
original)”[43]

Ora, se os direitos de terceira geração somente foram assimilados pela
consciência dos juristas mundiais a partir de 1979, é sinal que a tese
apresentada por João Baptista Herkenhoff da não-estabilização dos Direitos
Humanos com a simples Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU é correta,
pois esta fora promulgada trinta e um anos antes, em 1948.

Existe quem defenda até mesmo uma quarta geração de direitos, a qual
estaria apenas em estágio embrionário.

A não-estabilização dos Direitos Humanos é tão nítida que, Manuel
Gonçalves Ferreira Filho aponta para a necessidade de não-vulgarização dos
Direitos Fundamentais que surgiria da multiplicação destes direitos[44].

2.6 – As “gerações”, “dimensões”
ou “gestações” de Direitos Humanos

Sobre as “gerações” de Direitos Humanos, cumpre apresentar as palavras
de Burns H. Weston apud Flávia
Piovesan:

“[…] A este respeito, particularmente útil é a noção de “três
gerações de direitos humanos” elaborada pelo jurista francês Karel Vasak. Sob a
inspiração dos três temas da Revolução Francesa, estas três gerações de
direitos são as seguintes: a primeira geração se refere aos direitos civis e
políticos (liberté); a segunda
geração aos direitos econômicos, sociais e culturais (ègalité); e a terceira geração se refere aos novos direitos de
solidariedade (fraternité). […] (grifos no original)”[45]

Deve-se ter em mente que com a idéia de “gerações” de Direitos
Humanos, uma nova “geração” não exclui a anterior, muito pelo contrário, esta
nova “geração” – por força da interdependência que existe entre os Direitos
Humanos – vem reforçar a anterior.

O que acontece é que, em momentos históricos distintos, o povo percebe
que o atual estágio de Direitos Humanos é insuficiente para garantir-lhes a
dignidade condizente com sua condição de pessoa humana.

Desta forma, afirma Flávia Piovesan:

“[…] adota-se o entendimento de que uma geração de direitos não
substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a idéia da sucessão
“geracional” de direitos, na medida em que acolhe a idéia da expansão,
cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos
essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação. Logo,
apresentando os direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado o
direito à liberdade, quando não assegurado o direito à igualdade e, por sua
vez, esvaziado revela-se o direito à igualdade, quando não assegurada a
liberdade.”[46]

Assim, muda-se o enfoque da busca de Direitos, saindo-se da primeira
para a segunda geração, e desta para a terceira, ou, em termos históricos: na
época das Revoluções Francesa e de Independência da Treze Colônias, o que se
buscou foi a garantia dos Direitos Civis e Políticos; depois, à época da
Revolução Russa e pós-Primeira Guerra Mundial, buscou-se a garantia dos
Direitos Sociais, Econômicos e Culturais; e, presentemente, busca-se a
consagração dos Direitos de Fraternidade – o que, como dito anteriormente,
reforça a idéia de não-estabilização dos Direitos Humanos pela simples
Declaração da ONU em 1948.

Assim, sobre a primeira geração, escreveu Fábio Konder Comparato:

“Toda a “primeira geração” de direitos humanos, nos documentos
normativos produzidos pelos Estados Unidos recém independentes, ou pela
Revolução Francesa, foi composta de direitos que protegiam as liberdades civis
e políticas dos cidadãos, contra a prepotência dos órgãos estatais.”[47]

Alexandre de Morais, sobre os direitos de primeira geração, escreveu
que:

“[…] são os direitos e garantias individuais e políticos clássicos
(liberdades públicas), surgidos institucionalmente a partir da Magna Charta […] (grifo no original)”[48]

Sobre o surgimento dos “novos direitos” à época da segunda geração,
escreveu Manuel Gonçalves Ferreira Filho:

“Ao término da primeira Guerra Mundial – todos sabem – novos direitos
fundamentais foram reconhecidos. São os direitos
econômicos e sociais
que não excluem nem negam as liberdades públicas, mas
a elas se somam […] (grifo no
original)”[49]

Alexandre de Morais, por sua vez, lembra que:

“[…] direitos fundamentais de
segunda geração
que são os direitos econômicos, sociais e culturais,
surgidos no início do século, Themístocles Brandão Cavalcanti analisou que

“o começo no nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de
direitos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios
garantidores da liberdade das nações e das normas da convivência internacional.
Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o
trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice etc.”
[…] (grifo no original)”[50]

Sobre a terceira geração, escreveu Manuel Gonçalves Ferreira Filho:

“O reconhecimento dos direitos sociais não pôs termo à ampliação do
campo dos direitos fundamentais. Na verdade, a consciência de novos desafios,
não mais à vida e à liberdade, mas especialmente à qualidade de vida e à solidariedade
entre os seres humanos de todas as raças ou nações redundou no surgimento de
uma nova geração – a terceira –, a dos direitos fundamentais.

São estes chamados, na falta de melhor expressão, de direitos de solidariedade, ou fraternidade. A primeira geração seria
a dos direitos de liberdade, a
segunda dos direitos de igualdade, a
terceira, assim, completaria o lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade.

Na verdade, não se cristalizou ainda a doutrina a seu respeito. Muita
controvérsia existe quanto a sua natureza e a seu rol. Há mesmo quem os
conteste como falsos direitos do Homem. Tal hesitação é natural, pois foi
somente a partir de 1979 que se passou a falar desses novos direitos cabendo a
primazia a Karel Vasak. (girfos no
original)”[51]

Ainda sobre a terceira “geração”, escreveu Hewerstton Humenhuk:

“Na evolução dos direitos fundamentais, surgem os direitos da terceira
geração, que são direitos atribuídos à fraternidade ou de solidariedade. Assim,
especifica Maliska estes direitos como àqueles “concernentes ao
desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à propriedade sobre o patrimônio
comum da humanidade e a comunicação.””[52]

Quanto à terceira geração de direitos, escreveu Alexandre de Morais
que:

“[…] englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma
saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e
a outros direitos difusos que são, no dizer de José Marcelo Vigliar, os
interesses de grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há
vínculo jurídico ou fático muito preciso […]”[53]

Há, ainda – como dito anteriormente –, quem pregue o surgimento de uma
quarta geração de Direitos Humanos que, conforme Paulo Bonavides apud Hewerstton Humenhuk, seriam “o
direito à democracia, o direito à informação, e o direito ao pluralismo”[54]

Sendo que, ainda conforme Hewerstton Humenhuk:

“Ainda conforme brilhante comparação com a proposta de Bonavides, o
jurista gaúcho Sarlet preconiza:

“A proposta do Prof. Bonavides, comparada com as posições que arrolam
os direitos contra a manipulação genética, mudança de sexo, etc., como
integrando a quarta geração, oferece nítida vantagem de constituir, de fato,
uma nova fase no reconhecimento dos direitos fundamentais…””[55]

Quanto à possível quarta geração de direitos humanos, escreveu
Alexandre de Morais:

“Note-se que Celso Lafer classifica esses mesmos direitos em quatro
gerações, dizendo que os direitos de terceira e quarta gerações transcendem a
esfera dos indivíduos considerados em sua expressão singular, e recaindo,
exclusivamente, nos grupos primários e nas grandes formações sociais […]”[56]

Por outro lado, Valério de Oliveira Marzzuoli afirma, sobre a teoria
das gerações de direitos humanos, que

“Objeta-se, se as gerações de direitos induzem à idéia de sucessão –
através da qual uma categoria de direitos sucede a outra que se finda –, a
realidade histórica aponta, em sentido contrário, para a concomitância do
surgimento de vários textos jurídicos, concernentes a direitos humanos de uma
ou outra natureza. No plano interno, por exemplo, a consagração nas
Constituições dos direitos sociais foi, em geral, posterior à dos direitos
civis e políticos, ao passo que, no plano internacional, o surgimento da
Organização Internacional do Trabalho, em 1919, propiciou a elaboração de
diversas convenções, regulamentando os direitos sociais dos trabalhadores,
antes mesmo da internacionalização dos direitos civis e políticos no plano
externo.

O processo de desenvolvimento dos direitos humanos, assim, opera-se em
constante cumulação, sucedendo-se, no tempo, vários direitos, que, mutuamente,
se substituem, consoante a concepção contemporânea desses direitos, fundada na
sua universalidade, indivisibilidade e interdependência.”[57]

Esta teoria das “gerações” vem, contudo, sofrendo críticas, como, por
exemplo, as apresentadas por George Marmelstein Lima, para quem:

“A expressão “geração de direitos” tem sofrido várias
críticas da doutrina nacional e estrangeira. É que o uso do termo
“geração” pode dar a falsa impressão da substituição gradativa de uma
geração por outra, o que é um erro, já que, por exemplo, os direitos de
liberdade não desaparecem ou não deveriam desaparecer quando surgem os direitos
sociais e assim por diante. O processo é de acumulação e não de sucessão.

Além disso, a expressão pode induzir à idéia de que o reconhecimento
de uma nova geração somente pode ou deve ocorrer quando a geração anterior já
estiver madura o suficiente, dificultando bastante o reconhecimento de novos
direitos, sobretudo nos países ditos periféricos (em desenvolvimento), onde
sequer se conseguiu um nível minimamente satisfatório de maturidade dos
direitos da chamada “primeira geração”.

[…]

Além do equívoco acima exposto, que torna até perigosa a teoria das
gerações dos direitos fundamentais, já que dificulta a positivação e a
efetivação dos direitos sociais e econômicos, bem como dos direitos de
solidariedade mundial, a teoria também não retrata a verdade histórica.

A evolução dos direitos fundamentais não segue a linha descrita
(liberdade → igualdade → fraternidade) em todas as situações. Nem
sempre vieram os direitos da primeira geração para, somente depois, serem
reconhecidos os direitos da segunda geração.

[…]

Como se observa, todas as categorias de direitos fundamentais, sejam
os direitos civis e políticos, sejam os direitos sociais, econômicos,
ambientais e culturais, exigem obrigações negativas ou positivas por parte do
Estado. Os direitos civis e políticos não são realizados apenas mediante
obrigações negativas, assim como os direitos sociais, econômicos, ambientais e
culturais não são realizados apenas com obrigações positivas.

[…]

Em razão de todas essas críticas, a doutrina recente tem preferido o
termo “dimensões” no lugar de “gerações”, afastando a equivocada idéia de sucessão,
em que uma geração substitui a outra.

No entanto, a doutrina continua incorrendo no erro de querer
classificar determinados direitos como se eles fizessem parte de uma dada
dimensão, sem atentar para o aspecto da indivisibilidade dos direitos fundamentais.
Na verdade, não é adequado nem útil dizer, por exemplo, que o direito de
propriedade faz parte da primeira dimensão. Também não é correto nem útil dizer
que o direito à moradia é um direito de segunda dimensão.

O ideal é considerar que todos os direitos fundamentais podem ser
analisados e compreendidos em múltiplas dimensões, ou seja, na dimensão
individual-liberal (primeira dimensão), na dimensão social (segunda dimensão),
na dimensão de solidariedade (terceira dimensão) e na dimensão democrática (quarta
dimensão). Não há qualquer hierarquia entre essas dimensões. Na verdade, elas
fazem parte de uma mesma realidade dinâmica. Essa é a única forma de salvar a
teoria das dimensões dos direitos fundamentais.”[58]

Desta forma, a concepção de “gerações” de Direitos Humanos, indica
sucessão e não-cumulatividade entre uma e outra “geração”. Por outro lado, a
idéia de “dimensões” parece indicar o estudo de características intrínsecas dos
Direitos Humanos, e não alguma coisa extrínseca, como é o estudo sobre o surgimento
dos diversos Direitos Humanos.

É assim que preferimos utilizar o termo “gestações” de Direitos
Humanos, pois todos sabem que uma gestação não implica na morte ou na negação
do fruto da gestação anterior. Assim, deve-se proteger todas as gestações de
Direitos Humanos concomitantemente, da mesma forma como ocorre com uma família,
onde os pais procuram proteger todos os seus filhos indistintamente.

É claro que os filhos mais velhos, mais fortes não necessitam de tanta
proteção, enquanto que ao contrário, os mais jovens precisam de maior atenção;
assim também os Direitos Humanos: os mais antigos, já sedimentados na cultura
dos povos, não necessitam de maiores cuidados, enquanto que os mais recentes,
como, por exemplo, o direito a um meio-ambiente equilibrado, está em fase de
maiores atenções.

Da mesma forma, é possível que em determinada família, Maria nasça
antes que João, em quanto que em outra, ocorra o contrário, e João nasça antes
que Maria. Assim também com os Direitos Fundamentais, é possivel que em
determinado ordenamento jurídico, os direitos sociais sejam fruto de uma
gestação anterior que a dos direitos civis e políticos, muito embora, na
maioria dos casos ocorra o inverso.

Assim, cai por terra também o argumento das críticas relativas à
indivisibilidade dos Direitos Humanos, pois estes serão todos considerados –
apesar das diferentes “gestações” – como membros de uma única família: a dos
Direitos Humanos.

Existe uma outra vantagem da adoção desta nova terminologia, que é a
idéia de que uma gestação leva certo lapso de tempo para se concluir e dar à
luz o seu fruto. É o que ocorre com os Direitos Humanos: existe toda uma fase
preparatória anterior da sua promulgação. Primeiro verifica-se a insuficiência
dos atuais direitos, depois o povo pede mudanças, então os órgãos competentes
analisam as novas necessidades para, só então, promulgar os novos direitos. É,
justamente, este período o período de “gestação” dos Direitos Humanos.

Uma vez promulgados novos Direitos Humanos, o Estado estará,
novamente, preparado para dar à luz novos Direitos Humanos.

É o que ocorre, atualmente, com os Direitos Humanos de “quarta
gestação”, que estão, justamente, em fase de gestação, onde ainda não se sabe
se será menino, ou menina; ou seja, ainda não se sabe, exatamente, seu
conteúdo, mas sabe-se muito bem que o momento histórico atual está prestes a
consolidar novos Direitos Humanos.

2.7 – Novos e velhos Direitos

Ao contrário do que pode parecer, não existe qualquer contradição
entre a luta por novos direitos e a luta pela efetivação dos direitos já
proclamados. É o que se verifica com a teoria das gestações – ou gerações, como
é mais conhecida – dos Direitos Humanos: uma nova gestação não substitui, nem
exclui a anterior, pelo contrário, soma-se a ela.

Segundo, novamente o grande jurista João Baptista Herkenhoff:

“Heleno Cláudio Fragoso manifestou a opinião de que estaria
ultrapassada a fase das declarações de direitos e liberdades. A seu sentir, o
que constitui hoje preocupação universal é a criação de um sistema jurídico que
assegure, efetivamente, a observância dos direitos e liberdades proclamados.

[…]

Refere-se o inesquecível Heleno Fragoso, nessa passagem,
necessariamente, a um certo grupo de Direitos Humanos. Há outros que o sistema
jurídico, por si só, não está habilitado a prover.

Na mesma linha de pensamento, Karel Vasak pondera que parece estar
completo o trabalho legislativo internacional em matéria de Direitos Humanos.
Observa que da nada adianta multiplicar textos que encerram promessas mais ou
menos vagas, cuja aplicação, no âmbito jurídico interno, deixa a desejar.

Creio que esses autores estão com razão quando timbram na denúncia de
direitos proclamados que não encontram correspondência na realidade social.

As proclamações solenes de direitos sofrem o perigo de um desgaste
contínuo quando se percebe o abismo existente entre os postulados e a situação
concreta. O freqüente desrespeito aos Direitos Humanos, praticado sem remédio
por governos, gera, na opinião pública, a descrença na efetividade desses Direitos.

Reclama-se, assim, como
reivindicação incontornável da consciência jurídica internacional, a efetivação
dos Direitos Humanos. É indispensável a criação de mecanismos eficazes que
promovam e salvaguardem o império desses Direitos na civilização atual.

Contudo, se apoiarmos esses
autores no núcleo central da afirmação que fazem, não nos parece exato concluir
que a fase da proclamação de direitos esteja encerrada.

A História é movimento
dialético, a ampliação de direitos não se esgota. Novos direitos estão sendo
reclamados, minorias tomam consciência de sua dignidade
. Esse
dinamismo criativo de novos Direitos é uma das hipóteses centrais da pesquisa
que fizemos. […] (grifo nosso)”[59]

É justamente a tese da não-estabilização dos Direitos Humanos com a
Declaração da ONU de que tratamos no título 2.5 deste trabalho, e sobre a qual
o referido autor comprovou a veracidade em uma de suas obras, na qual ele
afirma:

“A idéia de “Direitos Humanos”
não se estabilizou no texto aprovado em 1948. Esta estabilização contrariaria o
sentido dialético da História.

É verdade que direitos afirmados
há quase 50 anos ainda não encontram plena aceitação
. É
flagrante o desrespeito a esses direitos, quer nos países do Terceiro Mundo (ou
mundo dos pobres, caso se entenda que já não existem 3 mundos, mas apenas 2),
quer na opulência do Primeiro Mundo (ou mundo dos países ricos).

Poderia parecer contraditório
que se fale em novos direitos, em alargamento de direitos, se direitos
elementares, como o de não ser torturado, ainda não têm plena vigência.

A oposição entre antigos e novos
direitos é aparente.

A consciência de novos direitos
não se opõe à busca de realização plena de direitos já afirmados.

Em muitas hipóteses há mesmo uma correlação na luta por direitos
históricos, antigos, e por direitos que se afirmam com mais vigor
contemporaneamente.

O direito a relações de Justiça, no plano internacional, por exemplo,
não foi contemplado expressamente pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos. É, então, em certo sentido, um direito novo.

Esse direito tem ligação estreita com direitos humanos de tradição
secular, no plano da vida interna dos países pobres.

A situação de penúria em que se encontram países do Terceiro Mundo
cria condições sociais que facilitam sobremaneira os abusos das autoridades
públicas contra a pessoa humana. A situação de miséria fabrica os ingredientes
que favorecem as violações pessoais. Por outro lado, essa situação de miséria
é, por si só, a mais grave violação dos Direitos Humanos porque é uma violação
coletiva.

A situação de penúria do Terceiro Mundo (ou mundo dos pobres) advém,
em grande parte, de relações econômicas internacionais injustas, conforme
demonstraremos.

A mesma correlação ocorre no que diz respeito aos “direitos dos
povos”, também não expressamente contemplados pela Declaração Universal.

Como se pode pretender, por exemplo, que o homem seja reconhecido como
pessoa perante a lei (artigo 6, da Declaração), se o Povo a que ele pertence,
se a Nação que ele integra não é reconhecida como “pessoa internacional”?

A História não caminha dentro de
parâmetros fixos. Esta é mais uma razão para concluir que a oposição colocada
no parágrafo anterior seja apenas aparente.

Os deficientes físicos, por
exemplo, aumentaram em número devido sobretudo a acidentes provocados pelas
máquinas modernas. Em decorrência desse crescimento do número de deficientes e
do crescimento da própria consciência de direitos por parte deles, seu poder
político hoje é muito maior do que há 50 anos.

Os deficientes não podem esperar
que direitos seculares sejam plenamente realizados (que a tortura acabe, por
exemplo) para então fazer valer sua voz.

Finalmente, não existe a suposta
contradição por uma terceira razão.

A luta por direitos históricos e
a luta por direitos que assumiram peso político, na atualidade, não se excluem.
Pelo contrário, são lutas que se acrescentam e que se enriquecem
reciprocamente.

Quando se quer que a tortura acabe, luta-se pela dignidade humana.

Quando se pede que os deficientes sejam ouvidos, luta-se pela
dignidade humana.

Quando se pede que o homossexual seja respeitado, luta-se pela
dignidade humana.

Quando se pleiteia pelos Direitos dos Povos, luta-se pela dignidade
humana.

Quando se grita para que vigorem princípios de Justiça, no plano da
relações econômicas internacionais, de modo que sejam superadas as estruturas
escravizadoras dos povos pobres da Terra, luta-se pela dignidade humana.

A luta pela dignidade humana é
uma luta única e solidária. Apenas assume aspectos particulares em face de
situações específicas
. (grifos
nossos)”[60]

Trata-se aqui – como já dito a pouco – de uma volta ao tema do título
2.5, onde pode-se comprovar que os Direitos Humanos ainda estão em fase de
expansão, existindo quem propugne por uma quarta gestação de direitos – como
visto no título 2.6.

Assim, estes três títulos – 2.5, 2.6 e o atual 2.7 – somam-se no
sentido de comprovar a tese de que ainda existem Direitos Humanos a serem
universalmente proclamados, e dos quais um deles é, justamente ,o
reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas.

3.0 – Limites dos direitos fundamentais

Nenhum direito é absoluto, mesmo em matéria de Direitos Fundamentais.

Nos dizeres de Alexandre de Morais:

“Os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática
de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou
diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de
total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição
Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos
demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou
garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a
coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total
de uns em relação aos outros, realizando um redução proporcional do âmbito de
alcance de cada qual (contradição dos
princípios
), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da
harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas. (grifos no original)”[61]

A limitação de um Direito Fundamental será necessária, portanto e,
principalmente, quando acontecer o choque entre dois direitos que, apesar de
absolutamente compatíveis – de um modo geral –, em determinado caso concreto se
apresentem como incompatíveis entre si.

E a conseqüência desta possibilidade de limitação a Direitos
Fundamentais da pessoa humana é o surgimento de teorias cujo intento é
descobrir critérios justos e válidos para a averiguação de como se deve
proceder quando exista, na prática, uma colisão entre dois Direitos
Fundamentais.

É o que se procura apresentar, de forma sintética, no presente
capítulo.

3.1 – Limites dos limites

Quanto à questão dos “limites dos limites” dos Direitos Fundamentais,
claros e objetivos os ensinamentos do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, para
quem:

“Da análise dos direitos individuais pode-se extrair a conclusão
errônea de que direitos, liberdades, poderes e garantias são passíveis de
limitação ou restrição. É preciso não perder de vista, porém, que tais restrições são limitadas.
Cogita-se aqui dos chamados limites imanentes ou “limites dos limites” (Schranken-Schranken),
que balizam a ação do legislador quando restringe direitos individuais. Esses limites, que decorrem da própria
Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial
do direito fundamental, quanto à clareza, determinação, generalidade e
proporcionalidade das restrições impostas. (grifos
no original)”[62]

Assim, as possíveis limitações que podem ser feitas aos Direitos
Fundamentais não são ilimitadas, devendo-se na prática, sempre, preservar um
mínimo de direito compatível com o Direito Fundamental o qual se pretende
limitar. É a idéia de “núcleo essencial” de um Direito Fundamental, que, nas
palavras do mesmo Ministro:

“De ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado
na Constituição ou enquanto postulado constitucionalmente imanente, o princípio
da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo
do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou
desproporcionais.”[63]

Porém, pouco mais adiante, ele ainda adverte que:

“Controverte-se na doutrina, ainda, sobre o exato significado do
princípio de proteção do núcleo essencial, indagando-se se ele há de ser interpretado
em sentido subjetivo ou objetivo, isto é, se o que se proíbe é a supressão de
um direito subjetivo determinado (teoria
subjetiva
), ou se se pretende assegurar a intangibilidade objetiva de uma
garantia dada pela Constituição (teoria
objetiva
). (grifos no original)”[64]

Apesar disso, lembra o Ministro que:

“[…] propõe Hesse uma fórmula conciliadora, que reconhece no
princípio da proporcionalidade uma proteção contra as limitações arbitrárias ou
desarrazoadas (teoria relativa), mas também contra a lesão ao núcleo essencial
dos direitos fundamentais. É que, observa Hesse, a proporcionalidade não há de
ser interpretada em sentido meramente econômico, de adequação da medida
limitadora ao fim perseguido, devendo também cuidar da harmonização dessa
finalidade com o direito afetado pela medida.”[65]

O importante é notar-se que, deve-se evitar, ao máximo, impedir que um
direito seja “destruído”, impedindo-se seu gozo por seu titular. Assim, deve-se
ter em mente que o direito de liberdade do homossexual não pode ser
sumariamente tolhido, sem que hajam fortes razões para fazê-lo, de forma que, a
menos a princípio, a liberdade homossexual deve ser garantida e protegida pelo
ordenamento jurídico.

Não se pode esquecer que, garantir no papel o direito à liberdade
homossexual (por exemplo, artigo 5º, inciso II da CF/88), mas impedir-se que
lhes seja juridicamente reconhecida a união homoafetiva, é o mesmo que impedir
sua liberdade.

Quanto à norma da proporcionalidade, esta será vista logo adiante,
descabendo maiores comentários no momento.

3.1.1 –
Proibição de limitações casuísticas

A proibição de limitações casuísticas está diretamente ligada ao
princípio da isonomia, garantido expressamente no caput do artigo 5º da Constituição Federal.

Seu significado implica na proibição de estabelecer-se, por via
legislativa, a restrição preconceituosa a determinado direito.

Nas inigualáveis palavras do Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

“Outra limitação implícita que há de ser observada diz respeito à
proibição de leis restritivas de conteúdo casuístico ou discriminatório. Em
outros termos, as restrições aos direitos individuais devem ser estabelecidas
por leis que atendam aos requisitos da generalidade e da abstração, evitando,
assim, tanto a violação do princípio da igualdade material, quanto a
possibilidade de que, através de leis individuais e concretas, o legislador
acabe por editar autênticos atos administrativos.

[…]

Diferentemente das ordens constitucionais alemã e portuguesa, a
Constituição brasileira não contempla expressamente a proibição de lei
casuística no seu texto.

Isto não significa, todavia, que tal princípio não tenha aplicação
entre nós. Como amplamente admitido na doutrina, tal princípio deriva do
postulado material da igualdade, que veda o tratamento discriminatório ou
arbitrário.

Resta evidente, assim, que a elaboração de normas restritivas de
caráter casuístico afronta, de plano, o princípio da isonomia.

É de observar-se, outrossim, que tal proibição traduz uma exigência do
Estado de Direito democrático, que se não compatibiliza com a prática de atos
discriminatórios ou arbitrários […]

[…]

[…] Segundo Canotilho lei individual restritiva inconstitucional é
toda lei que:

– imponha restrições aos direitos, liberdades e garantias de uma
pessoa ou de várias pessoas determinadas;

– imponha restrições a uma pessoa ou a um círculo de pessoas que,
embora não determinadas, podem ser determináveis através de conformação
intrínseca da lei e tendo em conta o momento de sua entrada em vigor.

O notável publicista português acentua que o critério fundamental para
a identificação de uma lei individual restritiva não é a sua formulação ou o
seu enunciado lingüistico, mas o seu conteúdo e respectivos efeitos. Daí
reconhecer a possibilidade de leis individuais camufladas, isto é, leis que,
formalmente, contém uma normação geral e abstrata, mas que, materialmente,
segundo o conteúdo e efeitos, dirigem-se, efetivamente, a um círculo
determinado ou determinável de pessoas.”[66]

3.2 – Colisão entre Direitos
Fundamentais

Quanto à colisão entre Direitos Fundamentais cumpre analisar as normas
da proporcionalidade da razoabilidade, as quais se destinam especificamente a
solucionar os problemas referentes ao choque entre dois, ou mais, Direitos
Fundamentais.

3.2.1 –
O Proporcional e o razoável

Existem duas normas, as quais são comumente chamadas de princípios
pela doutrina e jurisprudência, as quais se destinam a impor um critério
científico para avaliação de, na hipótese de colisão entre dois Direitos
Fundamentais, qual deles deverá prevalecer.

Estas duas normas são as regras da proporcionalidade e da
razoabilidade.

Porém, antes de falar-se sobre as normas da proporcionalidade, ou da
razoabilidade, deve-se, antes de mais nada, fazer-se uma distinção entre regras
e princípios.

Segundo Alexy, regras são deveres definitivos, onde só existem duas
possibilidades: ou são aplicáveis, ou são não-aplicáveis; enquanto que os
princípios são deveres prima facie,
ou seja, flexíveis, de forma a poderem ser aplicados em maior, ou menor, grau.

As regras são aplicadas através da subsunção, enquanto que os
princípios são normas que impõem a aplicação na maior medida possível, dentro
das possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto.

Segundo esta diferenciação de Alexy, estaríamos diante da “Regra” da
Proporcionalidade, e não do “princípio” da proporcionalidade como defendem a
doutrina e a jurisprudência nacional; uma vez que ou se aplica a norma da
proporcionalidade, ou não se aplica a norma da proporcionalidade, sendo
impossível uma “aplicação em parte” ou “até certo ponto” da norma da
proporcionalidade.

Enquanto que a colisão entre regras é resolvida pelos critérios da
especialidade, hierarquia ou pelo critério cronológico; a colisão entre
Princípios é resolvida por sopesamento, e é justamente para decidir-se os
conflitos entre princípios que surge a norma (regra) da proporcionalidade, cuja
origem remonta ao direito germânico.

Segundo o prof. Luiz Virgílio Afonso da Silva:

“[…] A regra da proporcionalidade é uma regra de interpretação e
aplicação do direito – no diz respeito ao objeto do presente estudo, de
interpretação e aplicação dos direitos fundamentais –, empregada especialmente
nos casos em que um ato estatal, destinado a promover a realização de um
direito fundamental ou de um interesse coletivo, implica a restrição de outro
ou de outros direitos fundamentais. O objetivo da aplicação da regra da
proporcionalidade, como o próprio nome indica, é fazer com que nenhuma
restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais. É, para usar
uma expressão consagrada, uma restrição
às restrições
… (grifos no
original)”[67]

A regra da proporcionalidade implica na aplicação de três sub-regras:
da adequação, da necessidade e a sub-regra da proporcionalidade.

Pela sub-regra da adequação, deve-se procurar saber se a medida que
implica no limite à determinado direito é adequada. A medida será adequada
quando fomente a realização da finalidade desejada.

Pela sub-regra da necessidade, deve-se procurar saber se inexiste
outra medida tão eficaz quanto a pretendida, porém menos danosa ao direito
limitado.

E, pela sub-regra da proporcionalidade, deve-se investigar se os
ganhos oferecidos pela medida limitadora do direito justificam as perdas, que
no caso são as limitações impostas ao direito em questão.

É necessário destacar-se que existe uma certa ordem necessária para o
exame das três sub-regras acima, de forma que somente se chegará à aplicação da
sub-regra da necessidade se, antes, tiver-se chegado, na aplicação da sub-regra
da adequação, a um resultado que justifique seu valoramento; e, só se chegará à
sub-regra da proporcionalidade, se antes o justificarem as sub-regras da
adequação e da necessidade.

Nas palavras do próprio prof. Luiz Virgílio Afonso da Silva:

“[…] a aplicação da regra da proporcionalidade nem sempre implica a análise de todas as suas três sub-regras.
Pode-se dizer que tais sub-regras relacionam-se de forma subsidiária entre si. Essa é uma importante característica, para
a qual não se tem dado a devida atenção
[…] com subsidiariedade quer-se
dizer que a análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já
não tiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da
proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se o problema já não
tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade. Assim, a
aplicação da regra da proporcionalidade pode esgotar-se, em alguns casos, com o
simples exame da adequação do ato estatal apara a promoção dos objetivos
pretendidos… (grifos no original)”[68]

Quanto à fundamentação da regra da proporcionalidade no Direito
brasileiro, degladiam-se a doutrina e jurisprudência nacional, não se chegando
a qualquer resposta melhor que a apontada pelo prof. Luiz Virgílio Afonso da
Silva – com a qual concordamos – e que afirma que a regra da proporcionalidade
é uma decorrência lógica do ordenamento jurídico como formado por regras e
princípios. Em suas próprias palavras:

“A despeito da opinião de inúmeros juristas da mais alta capacidade,
entendo que a busca por uma fundamentação jurídico-positiva da regra da
proporcionalidade é uma busca fadada a ser infrutífera.

A exigibilidade da regra da proporcionalidade para a solução de
colisão entre direitos fundamentais não decorre deste ou daquele dispositivo
constitucional, mas da própria estrutura
dos direitos fundamentais
. Essa fundamentação não se confunde, contudo, com
aquela anteriormente citada, segundo a qual a exigência de aplicação da regra
da proporcionalidade, por decorrer “do regime e dos princípios” adotados pela
Constituição, encontraria sustentação legal no §2º do art. 5º. A fundamentação
aqui seguida tem um caráter estritamente lógico, e valeria ainda que esse §2º
não existisse.(grifos no original)”[69]

Quanto à sua aplicação pelo STF, este parece utilizar-se mais da regra
da razoabilidade, de origem anglo-saxã, do que da regra da proporcionalidade.

Enquanto que a regra da proporcionalidade implica na utilização das
três sub-regras acima, a regra da razoabilidade está diretamente ligada à
simples idéia de bom senso.

Nas palavras do prof. Luiz Virgílio Afonso da Silva:

“[…] na Inglaterra fala-se em princípio da irrazoabilidade e não em princípio da razoabilidade. E a origem
concreta do princípio da irrazoabilidade, na forma como aplicada na Inglaterra,
não se encontra no longínquo ano de 1215, nem em nenhum outro documento
legislativo posterior, mas em decisão judicial proferida em 1948. E esse teste
da irrazoabilidade, conhecido também como teste
Wednesbury
, implica tão-somente rejeitar atos que sejam excepcionalmente irrazoáveis. Na fórmula
clássica da decisão Wednesbury: “se
uma decisão (…) é de tal forma irrazoável, que nenhuma autoridade razoável a
tomaria, então pode a Corte intervir”… (grifos
no original)”[70]

O STF, ao utilizar-se da regra da proporcionalidade não costuma
utilizar-se das três sub-regras, equiparando a regra da proporcionalidade à da
razoabilidade, transformando-as em sinônimos.

3.3 – Hipótese de exclusão de
benefício incompatível com o princípio da isonomia

A hipótese de exclusão de benefício incompatível com o princípio da
isonomia, como o próprio nome indica, e assim como a proibição de limitações
casuísticas, está diretamente ligada ao princípio de igualdade material.

Objetivas e indubitáveis são as palavras do Ministro Gilmar Ferreira
Mendes, para quem:

“O princípio da isonomia pode ser visto tanto como exigência de
tratamento igualitário (Gleichbehandlungsgebot),
quanto como proibição de tratamento discriminatório (Ungleichbehandlung-sverbot). A lesão ao princípio da isonomia
oferece problemas sobretudo quando se tem a chamada “exclusão de benefício
incompatível com o princípio da igualdade” (willkürlicher Bergünstigungsausschluss).

Tem-se uma “exclusão de benefício incompatível com o princípio da
igualdade” se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou
benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se
encontram em condições idênticas.

Essa exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita. Ela
é concludente se a lei concede benefícios apenas a determinado grupo; a exclusão de benefícios é explícita se
a lei geral que outorga determinados benefícios a certo grupo exclui sua
aplicação a outros segmentos.

O postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos, duas
situações que se encontram numa relação
de comparação
. Essa relatividade
do postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a uma inconstitucionalidade relativa (“relative Verfassungswidrigkeit”) não no sentido de uma
inconstitucionalidade menos grave. É que
inconstitucional não se afigura a norma “A” ou “B”, mas a disciplina
diferenciada das situações (“die Unterschiedlichkeit der Regelung”)
.

Essa peculiaridade do princípio da isonomia causa embaraços, uma vez
que a técnica convencional de superação da ofensa (cassação; declaração de
nulidade) não parece adequada na hipótese, podendo inclusive suprimir o
fundamento em que assenta a pretensão de eventual lesado. (grifos no original)”[71]

4.0 – Os direitos humanos na Constituição de 1988

A Constituição de 1988, indubitavelmente, deu ampla acolhida à idéia
de Direitos Humanos.

João Baptista Herkenhoff – em seu livro Direitos Humanos: uma idéia, muitas vozes onde ele estuda
detalhadamente cada um dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
da ONU – traça uma linha de semelhanças entre a Constituição Federal e a
Declaração de 1948, desde o preâmbulo de ambas, e concluindo que a Constituição
Federal, não só agasalhou os valores assinalados pela Declaração da ONU, como
foi mais longe. Em suas próprias palavras:

“O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o da nossa
atual Constituição guardam muitas semelhanças.

São valores abrigados pelo preâmbulo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos [e da própria Declaração
como um todo], como já observamos: 1 – a igualdade e a fraternidade; 2 – a
dignidade da pessoa humana; 3 – a liberdade; 4 – a Justiça; 5 – a proteção
legal dos direitos; 6 – a paz e a solidariedade universal; 7 – a democracia.

São valores realçados no preâmbulo da Constituição Brasileira:

a) o Estado Democrático; b) os direitos sociais e individuais,
colocados aqueles em primeiro lugar, na ordem de enumeração; c) a liberdade; d)
a segurança; e) o bem-estar; f) o desenvolvimento; g) a igualdade; h)a justiça;
i) o ideal de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social; j) o compromisso, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias; k) a crença na proteção de Deus.

A Constituição do Brasil avança, no seu preâmbulo, em relação à
Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando realça, mais que esta, os
direitos sociais e quando faz expressa referência ao desenvolvimento.”[72]

É claro que, como bem lembra Alexandre de Morais[73],
o preâmbulo não tem força normativa obrigatória[74],
mas, como este mesmo jurista bem observou, o preâmbulo constitucional “consiste
em uma certidão de origem e legitimidade
do novo texto e uma proclamação de
princípios”[75]
além de que:

“[…] o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve
ser observado como elemento de
interpretação
e integração dos
diversos artigos que lhe seguem. (grifos
no original)”[76]

Assim, é neste sentido que João Baptista Herkenhoff afirma, ainda,
que:

“Embora não fazendo parte do preâmbulo, os artigos 1º, 3º e 4º da
Constituição também agasalham princípios orientadores, esposam valores
fundamentais. Esses princípios e valores completam e explicam a tábua de opções
ético-jurídicas do preâmbulo. Se considerarmos esses artigos, como é
metodologicamente correto, complemento do preâmbulo, concluiremos que a enunciação
de valores humanos e democráticos da Constituição do Brasil avantaja-se ao
código de valores inscrito no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. […]”[77]

Por outro lado, como bem assina Valério de Oliveira Mazzuoli:

“Como marco fundamental do processo de institucionalização dos
direitos humanos no Brasil, a Carta de 1988, logo em seu primeiro artigo,
erigiu a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental (art. 1º, III),
instituindo, com esse princípio, um novo valor que confere suporte axiológico a
todo o sistema jurídico e que deve ser, sempre, levado em conta, quando se
trata de interpretar qualquer das normas constantes do ordenamento jurídico
nacional.”[78]

Flávia Piovesan concorda com o referido autor, ao afirmar:

“O valor da dignidade humana – imediatamente elevado a princípio
fundamental da Carta, nos termos do art. 1º III – impõe-se como núcleo e
informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de
valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional
instaurado em 1988. A
dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios
constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos,
conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de
1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva,
projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério
interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.”[79]

No tocante à materialidade dos Direitos Humanos na Constituição
Federal de 1988, escreveu Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“A Constituição de 1988 apresenta algumas variações em relação ao
modelo tradicional, seguido pelas anteriores.

Em primeiro lugar, ela enumera os direitos e garantias fundamentais
logo num Título II, antecedendo-os, portanto, à estruturação do Estado. Quis
com isso marcar a preeminência que lhes reconhece. […] deve-se registrar que
noutros pontos da Constituição são apontados direitos fundamentais, como é o caso
da seção relativa às limitações do poder
de tributar
. Qual o critério que ditou essa distribuição de assuntos,
ninguém sabe. Questão de técnica – dir-se-á – ou de falta de técnica, o que é
mais provável.

Grosso modo, no
capítulo sobre direitos e deveres individuais e coletivos (onde não se
encontram deveres) estão os direitos da primeira geração, mais as garantias, no
seguinte obviamente os direitos econômicos e sociais, a segunda geração. Quanto
à terceira, esta se faz representar pelo solitário direito ao meio ambiente
(art. 225). (grifos no original)”[80]

O mesmo Manoel Gonçalves Ferreira Filho escreveu ainda:

“É tradicional no direito brasileiro a inserção dos princípios básicos
do Estado de Direito entre os direitos e garantias fundamentais. Isto tem uma
razão de ser. São eles encarados como outras tantas garantias contra o
arbítrio. Realmente, o princípio da
legalidade
condiciona a uma forma – a forma da lei – o estabelecimento de
restrições aos direitos fundamentais; o princípio
da igualdade
exige que o regime legalmente estabelecido para cada direito
seja igual para todos; e, enfim, o princípio
da justicialidade
sujeita toda e qualquer lesão de direito ao crivo dos
tribunais […] (grifos no original)”[81]

Paulo Gustavo Gonet Branco, por sua vez, afirma que, com relação à
sistemática adotada pelo constituinte de 1988:

“[…] considerou-se num primeiro grupo a condição do homem-indivíduo,
independente dos demais e do próprio Estado, daí resultando os direitos
individuais. A situação do homem como membro de uma coletividade inspirou os
direitos coletivos. Uns e outros foram enumerados no art. 5º da Constituição.

Os direitos que contemplam o homem nas suas relações sociais e
culturais, seriam os direitos sociais, expressos nos arts. 6º e 193 e
seguintes. Os direitos que têm por objeto a nacionalidade do indivíduo deram
origem aos direitos arrolados no art. 12. Por fim, os direitos de participação
política foram enfeixados como direitos políticos, nos arts. 14 a 17 da Lei Maior.”[82]

Por outro lado, pelo texto insculpido no §2º do artigo 5º, vários
juristas[83]
pregam a abertura da Constituição Federal, e de todo o ordenamento jurídico
nacional, ao Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, com uma
concepção segundo a qual todo tratado internacional que verse sobre Direitos
Humanos passaria, após ratificação, a ter status
constitucional, passando, o seu conteúdo, a fazer parte do rol de direitos e
garantias inscritos no artigo 5º da Constituição Federal. Ou, nas palavras de
Valério de Oliveira Mazzuoli:

“A cláusula aberta do § 2º do art. 5º da Carta da República de 1988,
dessa forma, está a admitir visivelmente que os tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos ratificados pelo governo ingressem no ordenamento
jurídico brasileiro no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais, e não
em outro âmbito de hierarquia de normas.”[84]

Flávia Piovesan, para justificar este raciocínio, lembra que:

“[…] A esse raciocínio se acrescentam o princípio da máxima
efetividade das normas constitucionais referentes a direitos e garantias
fundamentais e a natureza materialmente constitucional dos direitos
fundamentais, o que justifica estender aos direitos enunciados em tratados o
regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias fundamentais.
Essa conclusão decorre também do processo de globalização, que propicia e
estimula a abertura da Constituição à normação internacional – abertura que
resulta na ampliação do “bloco de constitucionalidade”, que passa a incorporar
preceitos asseguradores de direitos fundamentais.”[85]

Apesar de não se referir ao §2º do artigo 5º, mas, ao contrário, de
utilizar-se de uma explicação jus-filosófica, Fábio Konder Comparato – com quem
concorda Flávia Piovesan – também afirma que, em caso de conflitos entre as
normas internas e os tratados internacionais de Direitos Humanos, deva
prevalecer a norma mais favorável.

Em suas próprias palavras:

“Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e
dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência
predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais
de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de certa forma a consciência ética
universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado […] Seja como
for, vai-se firmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflito
entre as regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há
de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a
proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser
de todo o sistema jurídico.”[86]

Ainda no tocante ao §2º do artigo 5º, escreveu Paulo Gustavo Gonet
Branco:

“O parágrafo em questão dá ensejo a que se afirme que se adotou um sistema aberto de direitos
fundamentais no Brasil, não se podendo considerar taxativa a enumeração dos
direitos fundamentais no Título II da Constituição. Essa interpretação é
sancionada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
, que, ao
apreciar a ação direta de inconstitucionalidade envolvendo a criação do IPMF,
afirmou que o princípio da anterioridade (art. 150, III, b, da CF) constitui um
direito ou garantia individual fundamental.

É legítimo, portanto, cogitar de direitos fundamentais previstos
expressamente no catálogo da Carta e de direitos materialmente fundamentais que
estão fora do catálogo. Direitos não
rotulados expressamente como fundamentais no título próprio da Constituição
podem ser como tal considerados, a depender da análise do seu objeto e dos
princípios adotados pela Constituição. A sua fundamentalidade decorreria da sua
referência a posições jurídicas ligadas ao valor da dignidade humana
, que,
por sua importância, não podem ser deixadas à disponibilidade absoluta do
legislador ordinário. (grifos nossos)”[87]

Vamos mais longe que o referido autor, e afirmamos que é possível a
existência de direitos, não expressos em momento algum pela Constituição, e
que, pelos argumentos acima, seriam, apesar desta circunstância, fundamentais.
Esta abertura é dada pelo citado § 2º do artigo 5º, que estabelece a
possibilidade de direitos fundamentais não expressos pela Constituição.

Assim, por apresentar direitos da terceira gestação – no caso o
direito ao meio ambiente equilibrado, art. 225 –, e ainda, por abrir a
possibilidade de criação de novos direitos não expressos em seu texto – a
abertura do §2º do art. 5º –, a Constituição dá mostras de acompanhar a idéia
de não-estabilização dos Direitos Humanos – analisada nos títulos 2.5 a 2.7 do presente
trabalho.

Por outro lado, o §1º do artigo 5º estabelece que “as normas
definidoras de direitos ou garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Assim, mais uma vez, a Constituição Federal dá mostras de ter acolhido o
paradigma de proteção aos Direitos Humanos.

Combinando os parágrafos 1º e 2º deste artigo 5º, Valério de Oliveira
Mazzuoli chega à afirmar que:

“Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos
humanos, uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre
direitos e garantias fundamentais, de igual maneira, terão, dentro do contexto
constitucional brasileiro, idêntica aplicação imediata […]

Atribuindo-lhes a Constituição a natureza de “norma constitucional” e
passando tais tratados a ter aplicabilidade imediata tão logo ratificados, fica
dispensada, por isto, a edição de decreto de promulgação, a fim de irradiar
seus efeitos tanto no plano interno como no plano internacional […]”[88]

Flávia Piovesan, mais uma vez, concorda com o referido autor,
afirmando que:

“[…] No que se refere à incorporação automática, diversamente dos
tratados tradicionais, os tratados internacionais de direitos humanos irradiam
efeitos concomitantemente na ordem jurídica internacional e nacional, a partir
do ato da ratificação. Não é necessária a produção de um ato normativo que
reproduza no ordenamento jurídico nacional o conteúdo do tratado, pois sua
incorporação é automática, nos termos do art. 5º, § 1º, que consagra o
princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais.”[89]

Cumpre lembrar, ainda, que o artigo 60, em seu parágrafo 4º que
estabelece o que os autores chamam de “cláusulas pétreas”, proíbe, em seu
inciso IV, Emendas Constitucionais tendentes a abolir os direitos e garantias
individuais; daí Valério de Oliveira Mazzuoli, continuando o raciocínio já
mencionado acima, afirmar que:

“Além do mais, todos os direitos inseridos nos referidos tratados
internacionais, cuja incorporação é automática, passam, também, a constituir
cláusulas pétreas do texto constitucional, não podendo ser suprimidos, sequer,
por Emenda Constitucional […]

[…]

Disso se tira uma outra conclusão: os tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos, uma vez incorporados no direito brasileiro, pelo
ato da ratificação, passam a ser insuscetíveis de denúncia, pois, se nem mesmo
por Emenda à Constituição esses acordos podem ser abolidos – em face das
cláusulas pétreas –, nem se diga, então, por simples ato unilateral do Chefe do
Poder Executivo.”[90]

Com relação ao citado artigo 60, §4º, IV da Constituição Federal,
escreveu Paulo Gustavo Gonet Branco:

“A Constituição cogita, no art. 5º, de direitos individuais e
coletivos. Distingui-los a partir dos critérios da Constituição em vigor não é
tarefa tranqüila, mas pode produzir conseqüências relevantes, na medida em que
o art. 60, § 4º, da Constituição fala apenas nos direitos individuais como
cláusulas pétreas.”[91]

Sem desejar adentrar-se na discussão, mas apenas como contra-argumento
à reste raciocínio, cumpre lembrar que uma das características dos Direitos
Humanos, e que é defendida por diversos autores – como visto anteriormente – é
justamente a interdependência destes direitos, de forma que, se não existe
direito à liberdade – no sentido de direitos de primeira gestação – sem o
direito à igualdade – no sentido de direitos de segunda gestação – sendo a
recíproca verdadeira, então conclui-se que, apesar de não expressamente
estabelecido pelo Poder Constituinte, claro está a proibição de Emenda Constitucional
que enfraqueça os direitos fundamentais não-individuais, pois, pela
interdependência que existe entre todos os Direitos Humanos, esta possível
supressão – ou simples enfraquecimento – de direito não-individual possuiria
uma “tendência de abolir” – para utilizar-se expressões constitucionais – os
Direitos e garantias individuais, sendo, portanto, proibida pelo preceito
constitucional em questão.

É bom lembrar, também, que o caput
do artigo 5º, garante os direitos fundamentais, nos termos que estabelece, não
só aos brasileiros, mas também aos estrangeiros residentes no país, existindo
quem pregue – acertadamente – a possibilidade de exigência dos referidos
direitos também para os estrangeiros não-residentes no país[92].

Outro importante aspecto referente aos Direitos Humanos dentro da
Constituição Federal de 1988 é lembrado por Alexandre de Morais:

“[…] também é função do Ministério Público, juntamente com os
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, garantir ao indivíduo a fruição de
todos os seus status
constitucionais. Essa idéia foi consagrada pelo legislador constituinte de
1988, que entendeu por fortalecer a Instituição, dando-lhe independência e
autonomia, bem como a causa social para defender e proteger. Um órgão, no dizer
de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “de promoção da defesa social desses
direitos” […]

Essa idéia de Ministério Público como defensor dos direitos e
garantias fundamentais é defendida também por Salvador Alemany Verdaguer […]

Corroborando a idéia da importância da atuação do Ministério Público
na efetividade dos direitos fundamentais, Smanio afirma que “rompeu o
constituinte de 1988 com o imobilismo da tradicional teoria da separação de
poderes, atribuindo função de atuação a determinado órgão do Estado, que é o
Ministério Público, para assegurar a eficácia dos direitos indisponíveis
previstos pela própria Constituição” […] (grifo
no original)”[93]

5.0 – Considerações finais

Assim, verificou-se, em primeiro lugar, que a nomenclatura para a
idéia de “gerações” de Direitos Humanos deve ser alterada para “gestações” de
Direitos Humanos, uma vez que mais adequada e menos sujeita a críticas.

Por outro lado, verificou-se, também, que a Constituição Federal de
1988 não só acolheu o ideal dos Direitos Humanos, como também, mais do que
isso, concedeu-lhes uma posição de destaque dentro do ordenamento jurídico
brasileiro, chegando ao ponto de ampliar os valores trazidos pela própria
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.

E, uma terceira conclusão que pode-se tirar do presente estudo é que a
existência de outros Direitos Humanos que merecem ser considerados e declarados
como tais é possível, e mais, aconselhável.

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Advogado em Pouso Alegre/MG, pós-graduado em Direito Constitucional pelo IBDC (Inst. Bras. de Dir. Constitucional) em parceria com a FDSM (Fac. de Dir. do Sul de Minas), capacitado para exercer as funções de Árbitro/Mediador pela SBDA (Soc. Bras. para Difusão da Mediação e Arbitragem), e membro, desde a fundação, do Quadro de Árbitros da CAMASUL – Câmara de Mediação e Arbitragem do Sul de Minas –, é, ainda, autor de diversas matérias jurídicas publicadas em revistas do Brasil e do exterior, e em diversos sites jurídicos.

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