ResumoEsta pesquisa possui como objetivo analisar como ocorreu o processo de sensegiving nas narrativas da Samarco, como uma prática estratégica, após o rompimento na barragem de Fundão. Para isso, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, com base em dados secundários, sendo coletados 307 arquivos (893 páginas) no site da Samarco, 297 arquivos (647 páginas) no site da Fundação Renova e 52 vídeos (191 minutos) no canal do Youtube Samarco Mineração. Em primeiro momento foi realizada uma análise de conteúdo cujo objetivo era observar os direcionamentos de conteúdo dado pela empresa a partir do rompimento; dessa análise foram inferidos seis momentos narrativos. Foi observado, a partir da análise narrativa, que a empresa aderiu desde o rompimento a uma estratégia discursiva que apresenta um sensegiving direcionado à volta de suas operações. Show
Palavras-chave: AbstractThis study analyzes how the sensegiving process present in the narrative of Samarco as a strategic practice regarding the rupture in the Fundão dam. This is a qualitative research based on secondary data that included 307 files (893 pages) from the Samarco website, 297 files (647 pages) from the Fundação Renova website and 52 videos (191 minutes) from the Youtube channel Samarco Mineração. At first, a content analysis was performed to observe the content directives provided by the company since the dam rupture. From the analysis were inferred six narrative moments. Ever since the dam incident, the company showed a discursive strategy grounded on presenting a sensegiving process concerning the return of its operations. Keywords: IntroduçãoA estratégia
organizacional, desde seu surgimento, remete à possibilidade de que as ações organizacionais sejam articuladas de forma a conduzir a um resultado pretendido (Vizeu & Gonçalves, 2010). As técnicas e os métodos precisos para conduzir a organização aos caminhos planejados foram por muito tempo a tônica da pesquisa em estratégia, garantindo aos estudos um tom normativo-prescritivo (Pettigrew, Thomas, & Whittington, 2001aPettigrew, A. M., Thomas, H., &
Whittington, R. (Eds.). (2001a). Handbook of strategy and management. Thousand Oaks: Sage ., 2001bPettigrew, A. M., Thomas, H., & Whittington, R. (2001b). Strategic management: The strengths and limitations of a field. In A. Pettigrew, H. Thomas, & R. Whittington (Eds.), Handbook of strategy and management (pp. 3-30). Thousand Oaks: Sage .). Até os anos de 1990, principalmente a partir do entendimento de que o mercado
era uma espécie de campo de guerra e que valia tudo para alcançar uma posição de liderança competitiva, pouco se discutiu sobre a intencionalidade que pauta uma ação estratégica (Faria & Abdalla, 2014Faria, A., & Abdalla, M. M. (2014). O que é (estratégia de) não mercado? Organizações & Sociedade, 21(69), 315-333.
doi:10.1590/S1984-92302014000200007 A perspectiva da estratégia como prática social (em inglês, strategy as practice - SAP), por sua vez, ao trazer para o campo da estratégia o projeto de compreender o que os praticantes
da estratégia efetivamente fazem “com elementos que vêm de fora, bem como dentro das organizações, e com efeitos que permeiam sociedades inteiras” (Whittington, 2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies , 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101 Nesse contexto, esta pesquisa lançará o olhar da perspectiva da estratégia como prática social para um evento de desastre organizacional de grandes proporções: no dia 5 de novembro de 2015, a aparente solidez de uma empresa que possuía licença social para operar, admirada por grande parte da população local, considerada o grande lastro econômico de toda uma região, desmanchou-se no ar quando a empresa deixou escorrer 34 milhões de metros cúbicos de lama, que continham também rejeitos de mineração. Trata-se do rompimento na barragem de Fundão, localizada no distrito de Bento Rodrigues, na cidade de Mariana (MG), cuja propriedade pertence à empresa de mineração Samarco. A lama contaminada com rejeitos de mineração escorreu por cerca de 650 km, por todo o Vale do Rio Doce, chegando até o mar, já no estado do Espírito Santo. Destruição de ecossistemas, poluição de mananciais de água, inviabilização de atividades agrícolas e pesqueiras das pequenas comunidades que habitavam a região, destruição de toda uma cidade que ficou coberta pela lama, desabrigando famílias e causando mortes, tudo isso foi intitulado como “acidente” e “desastre ambiental”, minimizando o papel da organização, que comprovadamente conhecia os riscos da operação da barragem em seu limite de capacidade (Ministério do Trabalho e Previdência Social, 2016Ministério do Trabalho e Previdência Social. (2016) Relatório de análise do acidente: Rompimento da Barragem em Mariana - MG. Brasília, DF: Autor.). A partir do rompimento da barragem de Fundão, a Samarco tornou-se inoperante e, por consequência, também perdeu
sua licença social1 1 Licença social se caracteriza pela aprovação da comunidade local para que determinada empresa possa operar e, portanto, não possui um lastro normativo ou regulativo, mas unicamente cultural-cognitivo (Social License, 2016). para operar. Portanto, desdobraram-se, a partir do evento desastroso, uma série de revelações relativas às fraudes e ao conhecimento explícito dos riscos por parte da empresa
(Ministério do Trabalho e Previdência Social, 2016Ministério do Trabalho e Previdência Social. (2016) Relatório de análise do acidente: Rompimento da Barragem em Mariana - MG. Brasília, DF: Autor.) e, desde o rompimento até hoje, se vão mais de 2 anos sem o retorno de suas operações. Nesse sentido, o desastre ocorrido com o rompimento na barragem de Fundão, de responsabilidade da empresa de mineração Samarco, se caracteriza como um caso
que, conforme Whittington et al. (2003Whittington, R., Jarzabkowski, P., Mayer, M., Mounoud, E., Nahapiet, J., & Rouleau, L. (2003). Taking strategy seriously: Responsibility and reform for an important social practice. Journal of Management Inquiry, 12(4), 396-409. doi:10.1177/1056492603258968 Não obstante a relevância do fenômeno em análise, conforme evidenciado com os dados acima, Vaara & Whittington (2012 Vaara, E., & Whittington, R. (2012). Strategy-as-practice: Taking social practices seriously. Academy of Management Annals , 6(1), 285-336. doi:10.5465/19416520.2012.672039 A ocorrência de eventos dessa natureza produz uma quebra na forma como funcionários, clientes, fornecedores e sociedade enxergam e reconhecem a organização protagonista do evento desastroso. Isso ocorre como resultado de uma ruptura de sentido relacionada à sua reputação diante do evento. É a partir dessa ruptura de sentido que a construção das narrativas organizacionais se apresenta como prática estratégica central, por parte da organização, que busca se engajar em um
processo de influência de sentidos - sensegiving - a fim de direcionar o sentido e os significados de suas ações (Gioia & Cittipedi, 1991Gioia, D. A., & Chittipeddi, K. (1991). Sensemaking and sensegiving in strategic change initiation. Strategic Management Journal, 12(6), 433-448. Recuperado de http://bit.ly/2HAOZ4F Diante do exposto, esta pesquisa alinha-se com os estudos da perspectiva da estratégia como prática social à medida que reconhece a estratégia como um fenômeno realizado por pessoas, imerso em um contexto social mais amplo, capaz de fornecer elementos articulados recursivamente no strategizing situado no cotidiano organizacional (Whittington,
2006Whittington, R. (2006). Completing the practice turn in strategy research. Organization Studies , 27(5), 613-634. doi:10.1177/0170840606064101 Se é assim, a estratégia proposta pela Samarco pós-rompimento é objeto de atenção por parte não só de seus funcionários e acionistas, mas também da sociedade em geral. A visão de legitimidade sobre as ações da empresa, que antes - diante da licença social para operar, resultado de um amplo processo de legitimação por parte da Samarco - era tomada por certa, com o
rompimento, é desfeita. Todas as suas ações passam a ser objeto de justificação. Essa justificação é intencionalmente direcionada pelo propósito estratégico da Samarco e significativamente articulada a partir da expectativa social relativa ao senso de adequação que define os padrões de legitimidade. Portanto, se o processo de strategizing da Samarco parece estar voltado para a retomada de sua operação, essa estratégia é objeto de convencimento social. A intenção da ação estratégica de
retomada da operação passa por um processo de legitimação. Adota-se a perspectiva narrativa (Fenton & Langley, 2011Fenton, C., & Langley, A. (2011). Strategy as practice and the narrative turn. Organization Studies, 32(9), 1171-1196. doi:10.1177/0170840611410838 A partir dessa construção argumentativa, o objetivo desta pesquisa é analisar como ocorreu o processo de sensegiving nas narrativas da Samarco como uma prática estratégica após o rompimento na barragem de Fundão. Para isso, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, com base em dados secundários disponíveis nos sites da Samarco - do qual se coletaram 307 arquivos (893 páginas) -, da Fundação Renova - 297 arquivos (647 páginas) -, e no canal do Youtube Samarco Mineração - 52 vídeos (191 minutos). A respeito da estrutura deste artigo, serão apresentados inicialmente os fundamentos teóricos norteadores da pesquisa, caracterizados pela perspectiva da estratégia como prática, e as noções de virada narrativa e processos de sensemaking e sensegiving. Em seguida será descrita a abordagem metodológica, a análise dos dados e, por fim, encerra-se com as considerações finais. A estratégia como prática social: posicionando entendimentos e demarcando a forma de apreensãoA perspectiva da estratégia como prática social propõe-se a compreendê-la como uma
realização humana, imersa socialmente e fruto de um processo de construção social (Jarzabkowski et al., 2007Jarzabkowski, P., Balogun, J., & Seidl, D. (2007). Strategizing: The challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 Assim, os estudos desenvolvidos sob essa perspectiva interessam-se pela compreensão de como, cotidianamente, na dimensão da práxis, os
praticantes (que são muito mais amplos que somente os estrategistas que concebem a estratégia) realizam essa estratégia. Esse processo recursivo entre práticas e práxis, fruto da ação humana (portanto, realizada por praticantes), é concebido como strategizing no fazer da estratégia (Seidl & Whittington, 2014Seidl, D., & Whittington, R. (2014). Enlarging the strategy-as-practice research agenda: Towards taller and flatter ontologies. Organization
Studies , 35(10), 1407-1421. doi:10.1177/0170840614541886 A práxis humana refere-se àquilo que os sujeitos efetivamente realizam no seu cotidiano. Na filosofia, o conceito foi inicialmente empregado como oposto à atividade de teorização, para evidenciar a realização prática cotidiana (Abbagnano, 1998Abbagnano, N. (1998). Dicionário de
filosofia. São Paulo, SP: Martins Fontes.). No entanto, não se pode tratar a práxis dissociada do entendimento que se tem da ação humana, que, inclusive, é base para as teorias que trabalham os conceitos de práticas sociais - Bourdieu, 2009Bourdieu, P. (2009). O senso prático. Petrópolis, RJ: Editora Vozes ., De Certeau, 2012De Certeau, M. (2012). A invenção do cotidiano: Artes de
fazer. Pretópolis, RJ: Editora Vozes., Giddens, 2003Giddens, A. (2003). A constituição da sociedade (2a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes . e Schatzki, 2006Schatzki, T. R. (2006). On organizations as they happen. Organization Studies , 27(12), 1863-1873.
doi:10.1177/0170840606071942 A estratégia pela perspectiva da prática social é, portanto, uma construção intersubjetiva (Berger & Luckmann, 2003Berger, P. L., & Luckmann, T. (2003). A construção social da realidade: Tratado sobre a sociologia do conhecimento (23a ed.). Petrópolis, RJ: Editora Vozes. (Trabalho original publicado em 1966).) em que, no processo de strategizing, os praticantes (funcionários de diferentes níveis organizacionais e atores externos à organização) negociam significados capazes de garantir a realização cotidiana da práxis relativa ao fazer estratégia. Os significados do que é e do que não é estratégia, de como deve ser, do que é um padrão de resultado satisfatório ou não, do que é certo ou errado não são criações puramente subjetivas; as práticas sociais carregam as referências objetivas daquilo que intersubjetivamente é legitimado como o padrão da ação a ser realizada na práxis cotidiana. Nesse processo, a linguagem adquire um papel relevante, uma vez que é por meio dela que a negociação de significados nessa construção intersubjetiva ocorre (Berger & Luckmann, 2003Berger, P. L., & Luckmann, T. (2003). A construção social da realidade: Tratado sobre a sociologia do conhecimento (23a ed.). Petrópolis, RJ: Editora Vozes. (Trabalho original publicado em 1966).). A obra de Berger e Luckmann (2003Berger, P. L., & Luckmann, T. (2003). A construção social da realidade: Tratado sobre a sociologia do conhecimento (23a ed.). Petrópolis, RJ: Editora Vozes. (Trabalho original publicado em 1966).) trata especialmente da interação face a face e da linguagem nesse contexto. Contemporaneamente, no entanto, a diluição das fronteiras de tempo e espaço nos processo comunicacionais (Giddens, 1991Giddens, A. (1991). As conseqüências da modernidade. São Paulo, SP: Editora Unesp.), a veiculação (quase) em tempo real das ações de diferentes agentes sociais (em especial as organizações) e a possibilidade de interação e opinião da ampla sociedade em relação aos fatos e suas versões veiculados (especialmente a partir das mídias sociais) amplificou ainda mais o papel da linguagem, fazendo com que o social seja “construído a partir de, e através de, processos tecnologicamente mediados e de infraestruturas de comunicação” (Couldry & Hepp, 2018Couldry, N., & Hepp, A. (2018). The mediated construction of reality. Hoboken: John Wiley & Sons., p. 1), fazendo com que as interações nesse “universo” também importem para a compreensão da estratégia organizacional. Entende-se, nesta pesquisa, que nesse caso as narrativas sejam de particular interesse, pois elas “são construções discursivas temporais que promovem um meio para o sensemaking e o sensegiving individual, organizacional e social . . . [e] geralmente são articuladas somente em fragmentos como parte dos discursos organizacionais” (Vaara et al.,
2016Vaara, E., Sonenshein, S., & Boje, D. (2016). Narratives as sources of stability and change in organizations: Approaches and directions for future research. Academy of Management Annals , 10(1), 1-76. doi:10.5465/19416520.2016.1120963 No que diz respeito às pesquisas empíricas relacionadas à perspectiva da SAP que trabalham com narrativas, frequentemente consideram o ato de narrar como uma prática estratégica relevante (De La Ville & Mounoud, 2010De La Ville, V. I., & Mounoud, E.
(2010). A narrative approach to strategy as practice: Strategy making from texts and narratives. In D. Golsorkhi, L. Rouleau, D. Seidl, & E. Vaara (Eds.), Cambridge handbook of strategy as practice (2a ed., pp. 183-197). Leiden: Cambridge University Press.; Rouleau, 2005Rouleau, L. (2005). Micro‐practices of strategic sensemaking and sensegiving: How middle managers interpret and sell change every day. Journal of Management Studies,
42(7), 1413-1441.; Sonenshein, 2010Sonenshein, S. (2010). We’re changing: Or are we? Untangling the role of progressive, regressive, and stability narratives during strategic change implementation. Academy of Management Journal , 53(3), 477-512. doi:10.5465/amj.2010.51467638 Além disso, a SAP evidencia os processos de compartilhamento, influência e construção de significados a partir dos quais a estratégia é realizada e, além disso, reconhece que um modo de se compreender a estratégia como prática social é a partir da compreensão de suas
narrativas (De La Ville & Mounoud, 2003De La Ville, V. I., & Mounoud, E. (2003). Between discourse and narration. In B. Czarniawska, & P. Gagliardi (Eds.), Narratives We Organize By (pp. 95-113). Amsterdam: John Benjamins Publishing., 2010De La Ville, V. I., & Mounoud, E. (2010). A narrative approach to strategy as practice: Strategy making from texts and narratives. In D. Golsorkhi, L. Rouleau,
D. Seidl, & E. Vaara (Eds.), Cambridge handbook of strategy as practice (2a ed., pp. 183-197). Leiden: Cambridge University Press.). Destaca-se, ainda, que as narrativas são fundamentais para os processos de construção de sentido (sensemaking), em vista do seu caráter retrospectivo; e, para os processos de influência sobre a construção de significados (sensegiving), quando o narrador busca por maior engajamento e por uma interpretação direcionada, se torna
indispensável compreender tais processos (Vaara, Sonenshein, & Boje, 2016Vaara, E., Sonenshein, S., & Boje, D. (2016). Narratives as sources of stability and change in organizations: Approaches and directions for future research. Academy of Management Annals , 10(1), 1-76. doi:10.5465/19416520.2016.1120963 Sensemaking e sensegiving: as narrativas como forma de apreensão do sentido atribuído à estratégiaA construção de significados é intrínseca à vida em sociedade e está presente nas práticas e no meio organizacional. Nesse caso, o trabalho de Karl Weick (1995Weick, K. E. (1995). Sensemaking in organizations (Vol. 3). Thousand Oaks: Sage .) propõe que é por meio do sensemaking que o desconhecido passa a ser conhecido. Isso posto, é por meio do sensemaking que os sujeitos literalmente produzem significados continuamente em relação às suas experiências, seja individualmente ou no âmbito social. Weick, Sutcliffe e Obstfeld (2005Weick, K. E., Sutcliffe, K. M., & Obstfeld, D. (2005). Organizing and the process of sensemaking.
Organization Science , 16(4), 409-421. doi:10.1287/orsc.1050.0133 Nesse sentido, no que refere aos processos de sensegiving, Gioia e Chittipeddi (1991Gioia, D. A., & Chittipeddi, K. (1991). Sensemaking and sensegiving in strategic change initiation. Strategic Management Journal, 12(6), 433-448. Recuperado de http://bit.ly/2HAOZ4F
Além da influência de significados, o sensegiving apresenta também intenções e estratégias construídas pelos diversos atores e pela coexistência das diversas narrativas na organização. Nesse sentido, o sensegiver (praticante), por meio da construção e posterior disseminação das narrativas organizacionais, se torna também um locutor (spokesperson) da estratégia e dos diversos atores organizacionais. Em outras palavras, o sensegiving está presente nas narrativas organizacionais na medida em que o locutor (praticante) seleciona elementos relevantes, a maneira como a mensagem será apresentada, por quem e por que (Rouleau, 2005Rouleau, L. (2005). Micro‐practices of strategic sensemaking and sensegiving: How middle managers interpret and sell change every day. Journal of Management Studies, 42(7), 1413-1441.). Outra questão que
permeia o processo de sensegiving organizacional são os gatilhos, isto é, as condições que motivam o ator organizacional a se engajar em um processo de sensegiving. Sobre esse aspecto, Maitlis e Lawrence (2007Maitlis, S., & Lawrence, T. B. (2007). Triggers and enablers of sensegiving in organizations. Academy of Management Journal, 50(1), 57-84.
doi:10.5465/amj.2007.24160971 Reconhecendo que o engajamento em um processo de sensegiving ocorre em momentos de ambiguidade ou mudança, observa-se que, por exemplo, um período de crise organizacional ou de enfrentamento a um desastre corporativo são episódios que podem gerar a motivação - isto é, ser um gatilho - para os processos de sensegiving, na medida em produz uma mudança estratégica da organização e que, consequentemente, esta deve ser traduzida e informada aos membros intra e extraorganizacionais. Em síntese, falar em sensemaking é
reconhecer de que forma as pessoas lidam com interrupções. Nesse sentido, os processos de sensemaking e de sensegiving estão geralmente vinculados a momentos de rupturas, ambiguidades e incertezas, nos quais os indivíduos buscam criar significados e coerência (Maitlis & Christianson, 2014Maitlis, S., & Christianson, M. (2014). Sensemaking in organizations: Taking stock and moving forward. Academy of Management Annals, 8(1), 57-125.
doi:10.5465/19416520.2014.873177 É por essa razão que a construção de narrativas organizacionais e especialmente o potencial de desempenho da estória se constituem como chave na construção de sentido organizacional, dado o entendimento de que a narrativa “molda e transmite” o sensemaking. Em relação ao sensegiving, o narrador busca trazer para a estória uma intenção que será articulada, transmitida e disseminada. As narrativas possuem características próprias e envolvem cadeias temporais de eventos ou ações realizadas por indivíduos. Sendo um específico tipo de texto, a narrativa não é simplesmente algo que possa ser “lido”; ela requer verbos que denotem que alguém fez ou vivenciou alguma coisa (Gabriel, 2004Gabriel, Y. (2004). Narratives, stories and texts. In D. Grant, C. Hardy, C. Oswick, & L. Putnam (Eds.), The Sage handbook of organizational discourse (pp. 61-77). Thousand Oaks: Sage .). Nessa lógica, as narrativas representam as diversas versões dos acontecimentos que constituem determinado
contexto, sendo estabelecidas por meio das representações e interpretações dos indivíduos perante suas experiências (Czarniawska, 2011Czarniawska, B. (2011). Narrating organization studies. Narrative Inquiry, 21(2), 337344. doi:10.1075/ni.21.2.12cza
Em outras palavras, é por meio da
narrativa que os indivíduos - ou organizações - constroem sua versão e um sentido sobre os acontecimentos que os perpassam, comunicando-os, debatendo-os e compartilhando-os com outras pessoas - ou com a sociedade (Gabriel, 2004Gabriel, Y. (2004). Narratives, stories and texts. In D. Grant, C. Hardy, C. Oswick, & L. Putnam (Eds.), The Sage handbook of organizational discourse (pp. 61-77). Thousand Oaks: Sage .). Para
Vaara, Sonenshein e Boje (2016Vaara, E., Sonenshein, S., & Boje, D. (2016). Narratives as sources of stability and change in organizations: Approaches and directions for future research. Academy of Management Annals , 10(1), 1-76. doi:10.5465/19416520.2016.1120963 A primeira característica, já citada neste texto como definidora do conceito de narrativas, é que as narrativas organizacionais são construções discursivas temporais que proporcionam um meio para o sensemaking e o sensegiving individual, social e organizacional. Essa temporalidade distingue as narrativas de outros tipos de discurso e fornecem um meio para compreender processos de instabilidade e mudança nas organizações. Assim, no contexto desta pesquisa, as narrativas nos permitem compreender o sensegiving, objeto principal de análise, em um cenário de crise que desencadeou um inevitável processo de mudança. A segunda característica é que as narrativas organizacionais nem sempre são estórias plenamente desenvolvidas; os enredos temporais não são explícitos e, por isso, a análise das narrativas no contexto organizacional precisa lidar com essa fragmentação. O delineamento metodológico nesta trabalho, com um recorte temporal amplo e um volume de dados narrativos significativos, teve por objetivo poder trabalhar o desenvolvimento de uma narrativa de pesquisa capaz de ordenar o enredo e a intenção que fundamenta o sensegiving, explicitando o “início” e o “fim-provisório” dessa estória, sem perder de vista o processo estratégico que conduziu seu enredo. A terceira característica identificada nas narrativas é a delimitação dos meios pelos quais são produzidas e consumidas, a fim de que se possa compreender sua intencionalidade. Reconhecem Vaara, Sonenshein e Boje (2016Vaara, E., Sonenshein, S., & Boje, D. (2016). Narratives as sources of stability and change in organizations: Approaches and directions for future research. Academy of Management
Annals , 10(1), 1-76. doi:10.5465/19416520.2016.1120963 A quarta característica diz respeito ao fato de que as narrativas organizacionais são parte de uma estrutura multifacetada, ligando-se aos níveis micro e macro de diferentes maneiras e exigindo foco em elementos específicos de análise dependendo do nível a ser apreendido. Essa característica é particularmente importante para que se possa realizar o projeto ontológico da perspectiva da estratégia como prática social, trabalhando a interligação entre os diferentes níveis de análise. A quinta característica discute que, embora exista uma ênfase na linguagem (escrita e falada), as narrativas organizacionais também se relacionam a outras formas de comunicação, como os aspectos audiovisuais. Ao entendermos a característica da realidade mediada (Couldry & Hepp, 2018Couldry, N., & Hepp, A. (2018). The mediated construction of reality. Hoboken: John Wiley & Sons.) que é evidente para as organizações atualmente e que adquire especial ênfase em situações de crise e desastres corporativos, a possibilidade de trabalhar as narrativas com esse espectro ampliado torna-se especialmente interessante. A sexta característica, por fim, evidencia que as narrativas desempenham um papel essencial em termos de estabilidade e mudança nas organizações, tendo um papel performativo no desempenho desses processos. Entende-se que essa seja talvez uma contribuição do trabalho, ao evidenciar
como as narrativas vão performando um curso de ação desejado, balizado por um processo de legitimação (Luckmann, 1987Luckmann, T. (1987). Comments on legitimation. Current Sociology , 35(2), 109-117. doi:10.1177/001139287035002011 Abordagem metodológicaAntes de tudo esta é uma pesquisa qualitativa baseada em dados secundários e apresenta como nível de análise o organizacional, e como unidade de análise as narrativas organizacionais. A coleta de dados foi realizada a partir dos meios de divulgação utilizados pela Samarco, como sua página da internet, relatórios, documentos e vídeos disseminados por ela no período do dia 5 de novembro de 2015 - data do rompimento - até agosto de 2017, período da coleta. Para a análise foram considerados pertinentes os dados disponíveis nos sites da Samarco, da Fundação Renova2 2 A fundação Renova foi constituída para reparar os impactos do rompimento na barragem de Fundão, estabelecida pelo Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado pela Samarco, Vale e BHP Billiton, os governos federal e estaduais de Minas Gerais e do Espírito Santo, além de fundações e institutos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Instituto Chico Mendes, Agência Nacional das Águas, Instituto Estadual de Florestas, Fundação Nacional do Índio, Secretarias de Meio Ambiente, entre outros (TTAC, 2016). e no canal do Youtube Samarco Mineração, conforme apontado no Quadro 1. Levando em consideração o volume de dados secundários coletados foi necessário realizar inicialmente uma análise de conteúdo (Saldaña, 2011Saldaña, J. (2011). Fundamentals of qualitative research. Jericho: Oxford University Press USA.). A análise foi realizada com o auxílio do software Atlas.ti tanto como repositório dos dados como facilitador para análise. No que diz respeito à análise, esta foi realizada a partir de uma leitura flutuante cujo objetivo foi extrair as seguintes informações: (1) tipo do documento; (2) tema geral do texto/vídeo; e (3) mensagem geral. Com a análise de conteúdo foi possível observar quais foram os direcionamentos do conteúdo publicado pela organização em análise. Enfim, com os resultados obtidos da análise de conteúdo foram inferidos seis momentos narrativos. Portanto, à vista dos resultados obtidos com a análise de conteúdo foi possível realizar a análise de narrativa, considerando que a partir dos momentos narrativos identificados foi possível escolher as narrativas consideradas mais emblemáticas para a análise, que constituíram os momentos performativos produzidos pelas narrativas. A análise de narrativa foi baseada na abordagem interacional narrativa de Shuman (2012Shuman, A. (2012). Exploring narrative interaction in multiple contexts. In J. A. Holstein, & J. F. Gubrium (Eds.), Varieties of narrative analysis (pp. 125-150). Thousand Oaks: Sage .), pois, para o autor, as narrativas se constituem como um recurso cultural relacionado à negociação de significados em contextos locais ou mais amplos. Tal abordagem, dessa maneira, figura como mais adequada para responder a problemática de pesquisa proposta. Dessa maneira, a análise narrativa terá como guia para análise a estrutura proposta no Quadro 2. Quadro 2 Conforme Vaara, Sonenshein e Boje
(2016Vaara, E., Sonenshein, S., & Boje, D. (2016). Narratives as sources of stability and change in organizations: Approaches and directions for future research. Academy of Management Annals , 10(1), 1-76. doi:10.5465/19416520.2016.1120963 A análise de cada narrativa foi realizada na sequência dos pontos indicados no Quadro 2, tendo em vista seu conteúdo, narrador, atores, apresentação, dialogicidade, ações e o que fica para além de tudo isso. A análise cronológica nesse caso é fundamental, tendo em vista a problemática aqui desenvolvida e que o estabelecimento de um processo temporal propicia a análise profunda da intencionalidade e o sentido construído que permeia por toda a narrativa construída pela Samarco. Pós-rompimento: direcionamento dos conteúdos publicados pela SamarcoCom o rompimento na barragem de Fundão a Samarco, desde o dia 5 de novembro de 2015, divulgou constantemente notícias, press releases e vídeos referentes ao evento e que dizem respeito a ações e tomadas de decisão da empresa, sua participação em termos e acordos com as diversas agências governamentais e o governo. Já a Fundação Renova começou a publicar materiais a partir de agosto de 2016, mês no qual a organização deu início às suas operações e assumiu os planos de mitigação do rompimento que até aquele momento eram de responsabilidade da Samarco. Nesse período com a transição do principal meio de comunicação em relação ao evento para a Fundação Renova, a Samarco se exime da necessidade de publicar sobre o rompimento e passa a direcionar seu conteúdo às atividades da própria organização. Com o objetivo de identificar quais seriam as narrativas pertinentes e relevantes para a análise foi construída uma linha do tempo a partir da análise de conteúdo realizada, cujo objetivo foi inferir os direcionamentos de conteúdo por parte da organização. Foi observado que a cada três ou quatro meses a Samarco alterou de maneira significativa os temas que eram publicados, conforme o Quadro 3. Quadro 3 A partir da análise de conteúdo, e ainda, observando todos os desdobramentos do conteúdo produzido e divulgado tanto pela Samarco quanto pela Fundação Renova desde a ocorrência do desastre corporativo, infere-se a construção de uma narrativa baseada em seis momentos, os quais se direcionam ao slogan “fazer o que tem que ser feito” e, consequentemente, sua ânsia de voltar a operar. Em suma, no que diz respeito aos momentos, em princípio (1) figura um momento narrativo que foca em esclarecimentos em relação ao evento e no comprometimento da empresa; em seguida, (2) a Samarco desenvolve um discurso responsivo em que busca mostrar que está agindo e está próxima da população impactada; posteriormente, (3) adota-se uma narrativa pautada no renascimento, tendo em vista o início da operacionalização da Fundação Renova; (4) recorre-se, então, a uma narrativa defensiva em que, ao evidenciar a magnitude do desastre, busca-se justificar a inação; a seguir, (5) a empresa desenvolve um discurso sobre sua não operação e impactos relacionados a isso; e, por fim, (6) se estabelece uma narrativa pautada na necessidade de voltar a operar. Diante desses movimentos, observa-se a construção de uma narrativa maior, em que cada um dos momentos representa parte da construção da estratégia discursiva pósrompimento. Os momentos narrativos constituem, em uma primeira análise, o enredo temporal das narrativas produzidas pela Samarco no período pós-rompimento (Vaara, Sonenshein, & Boje, 2016Vaara, E., Sonenshein, S., & Boje, D. (2016). Narratives as sources of stability and change in organizations: Approaches and directions for future research. Academy of Management Annals , 10(1), 1-76.
doi:10.5465/19416520.2016.1120963 É aqui que a narrativa adquire um papel performativo no processo de strategizing. Não se deseja com isso afirmar que todo o
strategizing está reduzido à discursividade narrativa, mas que diante da pressão pela abertura dessa estratégia (Hautz, Seidl, & Whittington, 2017Hautz, J., Seidl, D., & Whittington, R. (2017). Open strategy: Dimensions, dilemmas, dynamics. Long Range Planning, 50(3), 298-309. doi:10.1016/j.lrp.2016.12.001 Strategizing e sensegiving: os momentos narrativos e a grande narrativa construídaConforme abordado, a perspectiva da estratégia como prática social evidencia o strategizing. Veja que a utilização do gerúndio (final -ing, em inglês) no termo strategizing remete a um processo, o qual constrói e delimita a prática estratégica organizacional. Ademais, conforme Jarzabkowski et al.
(2007Jarzabkowski, P., Balogun, J., & Seidl, D. (2007). Strategizing: The challenges of a practice perspective. Human Relations, 60(1), 5-27. doi:10.1177/0018726707075703 Nesse exercício discursivo de sensegiving estabelecido pelo movimento narrativo construído pela Samarco, inferem-se seis momentos narrativos, os quais possibilitaram a escolha das seis narrativas mais emblemáticas construídas pela empresa. Ao final, há a composição de uma grande narrativa, a qual é reconstruída pelos autores deste trabalho, pautada por uma influenciação de sentido direcionada à volta das operações da empresa. (1) “Somos transparentes e vamos fazer o que tem que ser feito”A partir do rompimento na barragem se torna necessário que a empresa preste esclarecimentos sobre o que aconteceu para seus funcionários, stakeholders, interessados, comunidade envolvida e a sociedade em geral. Porém, quando eventos dessa natureza ocorrem, é necessário também tomar decisões relacionadas a solucionar e minimizar os impactos decorrentes. Nesse sentido, o primeiro momento narrativo adota um conteúdo pautado em esclarecer e, ao mesmo tempo, no comprometimento em solucionar os impactos decorrentes do rompimento na barragem de Fundão. Nesse contexto, a narrativa pertinente para análise figura a notícia publicada no dia 11 de novembro de 2015, intitulada “Comunicado oficial dos CEOs”
(Samarco Mineração, 2015aSamarco Mineração. (2015a, 11 de novembro). Comunicado oficial dos CEOs. Recuperado de http://bit.ly/2SLrQ4r Observa-se a existência de dois locutores, os quais, como CEOs das acionistas da Samarco, possuem interesse direto nos acontecimentos que perpassam esta organização. Dessa forma, estes buscam evidenciar que estão próximos da Samarco nas ações de mitigação. Ao se posicionarem como narradores centrais dessa narrativa, os CEOs da Vale e da BHP exercem um importante papel em descentralizar a função da Samarco, evidentemente com uma imagem desgastada e desacreditada. O papel do narrador em um texto narrativo é sempre de onipresença e pretensa neutralidade salvadora - o narrador tudo sabe e tudo pode prever. Portanto, apresentar a voz dos dois CEOs nesse contexto tem a clara intenção de proporcionar uma segurança a respeito dos acontecimentos futuros e, fundamentalmente, apropriar-se da voz capaz de atribuir um sentido conveniente. Em suma, a ação narrada reforça o papel de praticantes da estratégia, cujo objetivo é demonstrar o interesse por parte da Samarco em saber o que de fato aconteceu com o rompimento. Ressaltar essa ação a partir de sua divulgação é intencional, afinal, a organização aqui inicia um movimento discursivo de influenciação de sentido, parte relevante de seu strategizing. Além disso, chama atenção a maneira como os locutores caracterizam o rompimento na barragem de fundão, conforme o trecho:
Veja que o desastre corporativo é caracterizado como um “acidente”, o que remete a uma influência de sentido que busca suavizar o que aconteceu. Em outras palavras, os locutores, ao escolherem a palavra “acidente”, amenizam o acontecimento. Esse caso figura como exemplo de uma situação na qual a escolha de determinada palavra conduz “os sujeitos a olharem a organização através de uma comunicação filtrada, controlada e repleta de novas subjetivações” (Magalhães, 2013Magalhães, A. C. C. (2013). Storytelling como recurso estratégico comunicacional: Avaliando a natureza das narrativas no contexto das organizações (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG., p. 84). Em seguida, existe um enorme esforço em se apropriar da voz que outrora pertencia à Samarco, reiterando que a empresa está comprometida e agindo. Isso fica claro quando mencionam o encontro com as equipes da empresa envolvidas no trabalho de mitigação, quando relatam todo suporte dos acionistas e, principalmente, ao enfatizar que a Samarco atualizará constantemente as informações. Repare-se que existe um reforço, dado o processo de sensegiving estar direcionado à transparência e comprometimento, no entendimento de que a empresa e seus acionistas estão sendo transparentes no processo. Isso é decorrente de um discurso pautado na participação não só das organizações e de seus funcionários, mas também da comunidade da região e das autoridades. Em vista disso, sendo o strategizing um processo permeado pelas negociações dos múltiplos atores e de práticas situadas, observa-se na narrativa estabelecida aqui que a Samarco tenta trazer a voz desses múltiplos atores, os quais possuem interesse direto em tudo que está acontecimento. Todavia, mesmo trazendo tantos elementos para o enredo, a narrativa não apresenta nenhuma informação concreta do que ocorreu ou quais impactos já conseguiram ser averiguados. Isso tem um motivo; afinal, ao não tocar nesse assunto, a empresa e suas acionistas omitem sua responsabilidade para com o desastre e direcionam o processo de sensegiving, que enreda uma estratégia discursiva cujo foco é conseguir recuperar sua imagem organizacional e legitimidade: a Samarco é uma empresa transparente e disposta a resolver o que for preciso. (2) “Nós estamos agindo”Após os direcionamentos a respeito de esclarecimentos e comprometimento por parte da Samarco, esta dá início a um discurso responsivo, evidenciando as ações realizadas ou prospectadas e, ainda, há esforço em mostrar que a empresa está atuando próxima das comunidades impactadas e,
consequentemente, que está aberta ao diálogo. Em vista disso, a narrativa pertinente para análise figura a notícia publicada no dia 4 de dezembro de 2015, cujo título é o slogan “Fazer o que deve ser feito. Esse é o nosso compromisso” (Samarco Mineração, 2015bSamarco Mineração. (2015b, 4 de dezembro). Fazer o que deve ser feito: Esse é o nosso compromisso. Recuperado de http://bit.ly/31UU0Ou
Em primeiro momento, reconhecendo que a notícia foi publicada em um período ainda recente ao rompimento na barragem, esta é estabelecida como um tipo de reposta aos questionamentos externos, conforme o seguinte trecho:
Observa-se que a estrutura textual apresentada nesse excerto evidencia a não concordância com os questionamentos a que está sendo submetida: ao afirmar “estamos sendo muito questionados” e logo em seguida modalizar usando a palavra “mas”, a empresa estabelece discursivamente a relutância em admitir as circunstâncias relativas ao evento. Evidencia-se ainda que, mesmo perante os questionamentos, os propósitos organizacionais que conduziram a Samarco até aqui continuam os mesmos: “continuamos firmes”. Além disso, a firmeza se direciona aos “esclarecimentos”, e não a uma mobilização efetiva para reinventar o modo de organizar. Todavia, mesmo não explicitando os motivos pelos quais é questionada, a narrativa evidencia algumas questões: (1) a reafirmação de que a Samarco agiu de forma emergencial e não mediu esforços “para atender as emergências e buscar soluções”; (2) ao afirmar que “Somos mais de 3 mil pessoas orgulhosas do trabalho que realizamos há 40 anos no Brasil”, a organização
remete à sua legitimidade; e (3) foi publicado um infográfico quantificando as ações realizadas até aquele momento (Samarco Mineração, 2015bSamarco Mineração. (2015b, 4 de dezembro). Fazer o que deve ser feito: Esse é o nosso compromisso. Recuperado de http://bit.ly/31UU0Ou Nesse sentido, a narrativa figura como uma ilustração da adoção de um recurso presente em diversos documentos publicados pela empresa, ou seja, um fragmento narrativo no qual se busca responder de forma implícita ou explicita questionamentos e pressões externas, evidenciando a característica já descrita neste trabalho de que a estratégia e os propósitos organizacionais passam a ser de interesse social mais amplo e não só da organização. Aqui infere-se que o principal objetivo da mensagem, além da busca em responder alguma coisa, figura as ações e a reafirmação de que estão fazendo alguma coisa. Reforçado pelo título, que menciona o slogan da organização, e pelo título do infográfico, “Em ação desde o primeiro momento”. Em continuidade, a organização se posiciona em relação a si mesma como íntegra, orgulhosa e, principalmente, legítima; portanto, nessa narrativa também é apresentada uma estratégia defensiva diante dos questionamentos que desestabilizam a imagem da organização pós-rompimento na barragem de Fundão. Ademais, seu conteúdo se direciona à responsabilização da organização em agir, tendo como enfoque as ações emergenciais realizadas e, sobretudo, sua continuidade, conforme o trecho:
Por fim, questiona-se: qual ator estabelece o que deve ser feito? O papel de estabelecer o que deve ser feito parece ser assumido por aquele que não o fez durante todo o período pré-rompimento. Durante
muito tempo, a Samarco detinha o papel de grande herói no contexto em que operava, exemplificado pelo fato de que obteve uma licença social para operar (Samarco Mineração, 2015cSamarco Mineração. (2015c). Relatório anual de sustentabilidade 2014. Recuperado de http://bit.ly/2Tjbq4F (3) “Fundação Renova entra em cena: achamos uma solução?”O discurso responsivo se estabelece até meados de julho de 2016, que antecede o início da operação da Fundação Renova. Até esse período o direcionamento do conteúdo publicado pela Samarco evidenciava suas ações e seu comprometimento em solucionar os impactos do rompimento. Assim, com a assinatura do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta, que previa a constituição de uma fundação privada para desenvolver projetos direcionados a mitigar os impactos, no mês de agosto de 2016 o conteúdo é direcionado ao início da operação da Fundação e, consequentemente, à apropriação das ações da Samarco pela Fundação Renova. Percebe-se outra vez, como já observado no primeiro momento narrativo, o surgimento de um novo narrador na narrativa pós-rompimento. Assim como no início os CEOs da Vale e da BHP assumiram o papel de narradores, nesse momento a Fundação Renova passa a figurar como um novo personagem, central, que terá o papel de narrar, de forma onipresente e neutra, os eventos relativos ao contexto em análise. O início da operacionalização da Fundação Renova figura como “um recomeço” na retomada das ações e no estabelecimento de novas medidas para mitigar os impactos decorrentes do rompimento na barragem de Fundão. Nesse contexto, a narrativa escolhida é a
notícia publicada pela Samarco no dia 3 de agosto de 2016, intitulada “Fundação assume a continuidade das ações de recuperação” (Samarco Mineração, 2016aSamarco Mineração. (2016a, 3 de agosto). Fundação assume a continuidade das ações de recuperação. Recuperado de http://bit.ly/2SLw0cI Antes da notícia, já existiam figuras que remetiam a um exercício de sensegiving direcionado ao renascer, levando em consideração as imagens das mudas nascendo e de um rio limpo, cuja mata ciliar está intacta e reestabelecida. Além disso, as outras imagens evidenciam reconstrução, trabalho e ações sendo concretizadas. É a partir dessas imagens que o locutor dá continuidade na narrativa, descrevendo que a Fundação Renova já está em operação. Em seguida há um reforço sobre a ação desenvolvida pela Samarco até aquele momento, ao passo que o locutor apresenta a nova organização, como esta foi estabelecida e quem faz parte dela. Ao fim, explicam o significado da marca. A Samarco, como narradora, referindo-se à constituição da Fundação, posiciona a nova organização como transparente para a audiência. Esse tipo de posicionamento é uma estratégia discursiva recorrente nos processos de sensegiving da Samarco durante todo o período analisado. Dado que a Fundação Renova, mesmo que independente, possui sua imagem atrelada à Samarco e, ainda, é uma organização recente, o narrador procura dar credibilidade a suas ações pela existência de comitê externo que a acompanha, monitora e fiscaliza. Além disso, fica claro que o discurso apropriado pela Fundação é o mesmo da Samarco, ou seja, pautado em transparência, comprometimento e ação. Ao fim da narrativa, o narrador estabelece uma quebra no texto corrido, em que narra o significado da marca “Fundação Renova” e afirma que a marca é simples e dinâmica, relacionada à humildade e à coexistência de diversos atores. Aqui há forte infusão de sentido, aspecto central do sensegiving, com o estabelecimento de uma estratégia discursiva direcionada ao recomeço: o nome Renova, a representação da comunidade, empresas e governos - de forma que todos estão em um mesmo nível -, a alusão aos rios, matas e terras. Um sensegiving direcionado ao recomeço e ao encontro de uma solução para os impactos decorrentes do desastre corporativo que a Fundação Renova - conforme seu slogan - irá “reparar, restaurar e reconstruir”. Em suma, o que fica dessa narrativa é o sensegiving que promove o encontro de uma solução para remediar os impactos do desastre corporativo. Em outras palavras, fica entendido que atuação da Fundação Renova terá maior efetividade. (4) “Ainda há muito a ser feito”Mesmo com a apropriação pela Fundação Renova das ações e programas de mitigação do rompimento e, consequentemente, da sua divulgação, a Samarco publicou, um ano
após o rompimento, um vídeo em seu canal do Youtube, intitulado “Samarco 1 ano: Ainda há muito a ser feito” (Samarco Mineração, 2016bSamarco Mineração. (2016b, 1 de dezembro). Samarco 1 ano: ainda há muito a ser feito. Recuperado de http://bit.ly/31S0LAT Em relação ao conteúdo do vídeo, é importante entender que este refere-se aos impactos do rompimento apresentando em seu início imagens da lama, dos distritos destruídos e do Rio Doce poluído, em geral imagens monocromáticas e de destruição. Porém, logo em seguida, quando a narrativa estabelece uma retrospectiva do que se realizou desde então, as imagens passam a mostrar ações sendo concretizadas, a participação das comunidades e a natureza intacta. No que diz respeito ao conteúdo apresentado pelo vídeo, trata de alguns dos impactos originados pelo desastre corporativo, seguidos da tentativa de uma retrospectiva das ações de recuperação concretizadas até aquele momento. Além disso, se estabelece que, neste momento, o responsável pelas ações de recuperação é a Fundação Renova e não mais a Samarco. É fundamental ressaltar a recorrência, por parte da Samarco, na divulgação constante das mesmas ações em períodos diferentes. Esse vídeo, por exemplo, apresenta ações emergenciais que já foram divulgadas logo após o rompimento e, portanto, não fazem parte dos programas de recuperação desenvolvidos pela Fundação Renova, já que esta foi estabelecida apenas em março de 2016. Logo, se caracterizam por ações emergenciais e de direito dos impactados, ou ainda, que foram definidas judicialmente. Por conseguinte, fica claro que a exposição dos impactos foi uma estratégia discursiva adotada pela organização para justificar falta de ações e, ao mesmo tempo, enfatizar o que ela já realizou para mitigar os impactos. Novamente o sensegiving apresentado pela empresa é direcionado a seu comprometimento e à tentativa de “fazer o que deve ser feito”. Além disso, quando a Samarco afirma, ao final do vídeo, “mas ainda há muito a ser feito”, se estabelece uma infusão de sentido muito grande. Pois, ao mesmo tempo em que ela reforça o que fez como ações significativas quanto ao incidente, ela as diminui quando afirma que ainda existe muito a ser feito. Em outras palavras, é como se a empresa afirmasse “essas ações são só o começo” e, por conseguinte, existe muito a ser feito. A forma como a narrativa se apresenta reforça seu papel heroico, que se fundamenta sobre o seu slogan “fazer o tem que ser feito”: o herói nunca possui uma tarefa fácil; o heroísmo se estabelece no alcance de resultados que outros não são capazes de obter. Ao fim a Samarco se exime da responsabilidade pelas ações de recuperação, quando menciona que a Fundação Renova, desde agosto de 2016, é responsável por dar continuidade aos programas de recuperação socioeconômicos e socioambientais. (5) “Estamos paralisados! Alguém recorda dos impactos econômicos?”Com o lançamento do site da Fundação Renova, houve queda significativa de publicações da Samarco referentes ao rompimento e, a partir de agosto de 2016, a empresa passou a publicar em volume maior conteúdos relacionados à própria organização. Levando em consideração a inoperação da organização desde o desastre corporativo e sua busca contínua pelas licenças necessárias para conseguir voltar a operar, ela adere a um discurso pautado no acúmulo de mais de um tipo de impacto relacionado ao desastre corporativo: o impacto econômico decorrente da sua não operação. A narrativa pertinente se caracteriza pela notícia publicada em 28 de março de 2017, intitulada “Estudo mostra impacto da paralisação da Samarco na economia” (Samarco Mineração, 2017bSamarco Mineração. (2017b, 28 de março). Estudo mostra impacto da paralisação da Samarco na economia. Recuperado de http://bit.ly/2SICt8k A narrativa divulga os resultados de um estudo realizado pela Tendências Consultoria Integrada, contratada por uma das empresas acionistas da Samarco. Nesse contexto, é mencionado que o estudo estimou os impactos diretos e indiretos da inatividade da Samarco e, ainda, que cerca de 20 mil empregos podem estar em risco caso continue a inoperação da empresa. É relevante mencionar que toda essa descrição está situada em um contexto de “Brasil em crise”, no qual a sensibilização de toda a população em relação ao desemprego e aos fatores econômicos é evidente. Adotar esse tipo de argumento é um elemento poderoso na tentativa de influenciação do sentido. Por fim, apresentam alguns números e um infográfico. Um ponto que chama atenção é a narrativa dar voz ao estudo realizado, conforme o trecho:
Aqui se reforça um sensegiving pautado nas consequências da não operação da empresa. Esse trecho acentua, a partir da escolha das palavras, uma comunicação filtrada na qual a culpa - caso as demissões sejam concretizadas - recai em quem ou no que não permitiu que a empresa voltasse a operar. Em outras palavras, a forma como a empresa se coloca a exime da culpa. Além disso, como é dada voz ao estudo, é ele que estabelece que cerca de 20 mil empregados possam ser demitidos, e não a Samarco. Para dar maior credibilidade às consequências econômicas, no infográfico estão números elaborados a partir de prospecções futuras, para os próximos 10 anos, o que possui um efeito aumentado da situação para quem lê a narrativa. Ora, essa notícia foi publicada em março de 2017, e nenhum dos dados divulgados faz alusão ao ano de 2016, no qual a empresa também estava em inoperação. Essa narrativa é exemplo de uma estratégia discursiva bastante utilizada pela organização, isto é, narrativas que estabeleçam justificativas para ações consideradas ruins ou desfavoráveis ou que possam colocar em jogo sua credibilidade. Dessa maneira, é recorrente a adoção de uma estratégia discursiva que faz com que as culpas de diversas ações sejam justificadas de maneira que a organização se mantém neutra. Em suma, a narrativa apresenta um direcionamento de sentido no qual o locutor busca evidenciar a legitimidade da Samarco, sua importância econômica para o país e as consequências caso não volte a operar em um período próximo. (6) “Queremos voltar a operar”O último momento narrativo é emblemático, pois exemplifica toda a grande narrativa construída pela organização desde o dia do desastre. Por essa razão, a narrativa analisada figura na notícia publicada no dia 30 de maio de 2017, intitulada “Artigo: Queremos voltar a operar” (Samarco Mineração, 2017aSamarco Mineração. (2017a, 30 de maio). Artigo: Queremos voltar a operar. Recuperado de http://bit.ly/2wjiwxd
Antes de tudo, pontua-se a imagem publicada: uma foto do novo diretorpresidente da Samarco, Roberto Carvalho, junto a uma frase dita por ele “Acreditamos na legitimidade da retomada da empresa”. O diretor-presidente assume a primeira pessoa do plural, na medida em que, ao mencionar a Samarco como “nós”, ele remete a si mesmo e aos funcionários da organização; logo, afirma que ele e os funcionários acreditam ser legítimo que a empresa volte a operar. Ora, é fundamental salientar, neste momento, que legitimidade não é algo determinado pelo presidente ou pelos funcionários da empresa, mas, sim, pela sociedade na qual ela está inserida. Já a respeito do conteúdo proveniente do texto, é possível observar nos desdobramentos da narrativa que, primeiramente, evidencia-se o desastre corporativo ao passo que se recordam as ações realizadas, a responsabilidade em agir, em esclarecer, e o quanto a Samarco é comprometida. Em seguida o foco recai em mostrar que a empresa está preparada para voltar a operar e que o que ocorreu não acontecerá novamente. Dando continuidade, o narrador pontua a necessidade de realizar o Licenciamento Operacional Corretivo das estruturas existentes no complexo de Germano, e ainda reforça a falta de uma das licenças, a da cidade de Santa Bárbara. Porém, logo o narrador ressalta que já estão em busca de uma solução judicial para o caso. Após abordar alguns aspectos legais que impedem a volta da Samarco, o conteúdo é direcionado aos impactos decorrentes da inatividade da empresa. São abordados os períodos de layoff realizados, os impactos relacionados aos funcionários e suas famílias, os impactos para perspectivas de negócios com fornecedores e clientes, impactos prospectados decorrentes de alguns resultados do estudo realizado pela Tendências Consultoria Integrada e, por fim, os impactos para a sociedade em geral. Ao fim, reafirmam a contribuição econômica da Samarco ao país e fazem referência à legitimidade tanto da empresa quanto de seus motivos em retomar as atividades. Completam que sempre foram responsáveis com suas obrigações e que agora necessitam de urgência e agilidade nos processos relacionados à volta de suas operações. A narrativa apresenta como locutor o diretor-presidente Roberto Carvalho, porém, ele narra em primeira pessoa do plural e, portanto, durante todo o texto dá sua voz à Samarco3 3 A alusão à Samarco ocorre quando o narrador, ao se utilizar da primeira pessoa do plural, se refere a si e aos funcionários da organização, dando sua voz, portanto, à Samarco. e a todo o caminho percorrido por ela até esse momento. Um primeiro posicionamento da organização é apresentado no trecho
Veja que, ao mencionar o rompimento, a Samarco se coloca também como vítima, ao afirmar que o fato marcou profundamente sua trajetória. Depois, seu posicionamento é de que a empresa fez o possível para cumprir com as obrigações competentes a ela. Aqui a narrativa é clara ao afirmar que as ações foram realizadas devido a obrigações. Logo após, a narrativa menciona a Fundação, a fim de declarar que neste momento a Samarco não é mais responsável em mitigar os impactos do rompimento. Pouco depois, levando em consideração que o objetivo da organização é a retomada de suas operações, ela posiciona-se como preparada para isso, conforme afirma que houve obras de reforço às estruturas remanescentes, revisão do plano de ações emergenciais, melhora nos sistemas de alerta e realização de simulações com a comunidade. No que tange ao posicionamento da empresa para/com a audiência, a Samarco afirma possuir legitimidade para retomar suas operações. O locutor constrói esse posicionamento pautado em um sensegiving direcionado à importância da empresa para a região e o país, como uma produtora de riqueza, indispensável para o crescimento da região em que atua. Além disso, se posiciona como uma empresa responsável e comprometida. Por essa razão, ela acredita ter a legitimidade para retomar suas operações. Fica explícita a importância do sensegiving como uma prática central no strategizing da Samarco, centrado na retomada das suas operações. Para isso, observa-se a utilização de um sensegiving direcionado a mostrar o quanto a empresa tem impactos significativos, tanto econômicos quanto para solucionar as questões decorrentes do rompimento na barragem de Fundão. Ainda, em relação às negociações de sentido presentes no texto, a empresa é pontual em salientar qual prefeitura ainda falta conceder a declaração de conformidade. Ao fazer isso, a empresa busca apresentar, de certa forma, um culpado direto que a impede de prosseguir. Como se pode observar nos desdobramentos da narrativa, ela se apresenta como uma estratégia pela qual a organização tenta solucionar aspectos fora do seu alcance. Além disso, ela busca gerar empatia com a organização por parte do leitor4 4 O público-alvo, inferido pela análise de conteúdo, dessa narrativa é a população impactada. quando o sensegiving foca que todos os envolvidos - tanto a população impactada quando a própria organização - sofrem consequências pela ocorrência do desastre corporativo, mas, principalmente, pela contínua inatividade da organização. Por fim, o que fica da narrativa é um tom coercitivo da organização para voltar a operar, já que, de acordo com ela, fez o que deveria ser feito. Além disso, a volta de suas atividades é estabelecida por um sensegiving de que isso é a solução para minimizar os impactos já conhecidos do desastre corporativo, como também para evitar impactos futuros. Considerações finaisAntes de tudo, Gabriel (2004Gabriel, Y. (2004). Narratives, stories and texts. In D. Grant, C. Hardy, C. Oswick, & L. Putnam (Eds.), The Sage handbook of organizational discourse (pp. 61-77). Thousand Oaks: Sage .) menciona que são pelas narrativas que os indivíduos - ou organizações - constroem sua versão e um sentido sobre os acontecimentos que vivenciam. Dessa maneira, é fundamental entender que, ao mesmo tempo que a problemática deste trabalho se pauta sobre a versão estabelecida e assumida pela Samarco Mineração, a própria pesquisa também se constitui como uma versão e, portanto, se estabelece como uma narrativa referente aos dados secundários analisados (Czarniawska, 2004Czarniawska, B. (2004). Narratives in social science research. Thousand Oaks: Sage.). Ao analisar o processo de sensegiving nas narrativas da Samarco como uma prática estratégica central no strategizing de uma organização em crise, percebe-se que a empresa, a partir da concretização do desastre, constrói uma grande narrativa em relação ao desastre que, desde seu início, se constitui em uma influenciação de sentido direcionada à volta de suas operações, caracterizada por seis momentos aqui inferidos e analisados. Toda a construção dessa narrativa posiciona a Samarco como herói e vítima de uma injustiça: a impossibilidade de voltar a operar. Atribui-se à empresa o papel de salvador: se consegue voltar a operar, logo leva com ela toda uma comunidade, uma região, um país. Ao mesmo tempo, ao adotar um discurso pautado em uma lógica de causa e efeito, estabelece que, se permanecer a “injustiça” de estar impedida de voltar a operar, todo um “efeito dominó” se estabelecerá, causando prejuízos econômicos de toda ordem. Nota-se que a Samarco é colocada como personagem central: nenhuma outra organização, ou nenhuma outra solução, seria capaz de possibilitar desenvolvimento localregionalnacional em termos econômicos como ela faz. Assim, todos são “reféns” de sua operação. Aludir, portanto, aos dados apresentados é evidenciar que não há outra saída a não ser ceder à operação da empresa. Percebe-se que toda essa narrativa foi preparada durante a trajetória aqui descrita, que começou afirmando o comprometimento, o papel de vítima da empresa em relação ao “desastre”, passando pelo discurso de “fazer o que deve ser feito” e chegando à conclusão de que o “herói” não pode ser impedido de realizar suas “benesses”, sob pena de um “sofrimento” coletivo. Fica estabelecida aí uma estratégia discursiva que parece direcionar um sentido muito claro em relação a todo o evento sob análise. Durante toda a trajetória, percebe-se que existe uma negociação de vozes que percorre toda a narrativa: em primeiro momento, a voz pertence à Vale e à BHP; então, à Samarco; depois à Fundação Renova; e, por fim, à Samarco novamente, porém, agora repaginada, com novo presidente. Mesmo com a contínua negociação de vozes e, consequentemente, a existência de diversos narradores, fica explícita a ausência de um espaço para sensemaking. A falta de abertura para que um sensemaking seja estabelecido por outros atores fica nítido nos momentos em que a organização, ao divulgar notícias, press releases ou vídeos, o faz com o intuito de algum tipo de resposta a algo ou a alguém, como forma de defesa e pautada sobre uma estratégia reativa. Todavia, ao passo que a organização deixa claro que determinada publicação é devida a algum tipo de questionamento, ela não expõe de fato sobre o que ela está respondendo ou mesmo a quem responde. Ela não dá espaço aos questionados e só expõe seu lado, seu sentindo, sua versão. Ou ainda, quando abre algum tipo de espaço, são para versões que corroboram seu processo de sensegiving. Para além da identificação do sentido direcionado nos materiais produzidos pela Samarco no período pós-desastre, algumas contribuições teóricas podem ser apontadas a partir desta pesquisa. Primeiramente, as análises permitem identificar que o sensegiving se constitui como
uma prática estratégica proeminente no strategizing de organizações em crise. Nesses casos, a estratégia organizacional fica em evidência -sob julgamento dos praticantes tanto internos quanto externos - e, portanto, uma das práticas fundamentais no processo de strategizing constitui-se no sensegiving, com a tentativa da organização de influenciação de sentido que lhe permita engajar-se em um processo de legitimação do seu papel na retomada da liderança de sua própria
conduta e de seus propósitos. Não por acaso, nesse sensegiving as narrativas figuram como um recurso performativo pela estabilidade e mudança dessas organizações. Tendo em vista as características das narrativas organizacionais, que conferem um nexo temporal e de sentido, e também a metáfora do homo narrans para caracterizar a natureza humana (FISHER, 1984Fisher, W. R. (1984). Narration as a human communication paradigm: The case of public
moral argument. Communications Monographs, 51(1), 1-22. doi:10.1080/03637758409390180 Uma segunda contribuição teórica que os achados permitem discutir diz respeito ao próprio fenômeno da estratégia. Em situações de crise, as organizações são pressionadas a se engajar em um processo de abertura da estratégia, em diferentes graus de transparência e inclusão (Hautz, Seidl, & Whittington, 2017Hautz, J., Seidl, D., & Whittington, R. (2017). Open strategy: Dimensions, dilemmas, dynamics. Long Range
Planning, 50(3), 298-309. doi:10.1016/j.lrp.2016.12.001 Por fim, uma terceira contribuição teórica que esta pesquisa enseja advém das discussões de Tsoukas (2018 Tsoukas, H. (2018). Strategy and virtue: Developing strategy-as-practice through virtue ethics.
Strategic Organization, 16(3), 323-351. doi:10.1177/1476127017733142 Assim, se começarmos a discutir a dimensão ética da estratégia, conforme conclama Tsoukas (2018 Tsoukas, H. (2018). Strategy and virtue: Developing strategy-as-practice through virtue ethics. Strategic Organization, 16(3), 323-351. doi:10.1177/1476127017733142 AgradecimentosAo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Referências
|