O que aconteceu com a maioria dos trabalhadores depois da construção de Brasília?

  • "Apenas um episódio"
  • Queda de 12 metros
  • Mito ou verdade?
  • Sem nem cemitério
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Publicado em 21/04/2018, Atualizado em 21/04/2018

Não há documentação oficial, mas sobram relatos de que corpos de trabalhadores estejam concretados no Congresso Nacional, na Esplanada e na Torre de TV.

"Apenas um episódio"

Brasília, o sonho profético de Dom Bosco, levou mais de meio século para começar a ser construída. Colocada a pedra inaugural, os operários tiveram apenas cinco anos para erguer uma capital. Diante do prazo apertado, há farta documentação com relatos da negligência em relação à saúde e segurança dos empregados.

O trabalho era intenso; a fiscalização, nula. As condições ruins e os acidentes frequentes nas obras fizeram proliferar os relatos de que corpos de trabalhadores mortos eram depositados nas colunas de concreto que sustentam três dos símbolos mais icônicos da capital – Congresso Nacional, Esplanada dos Ministérios e Torre de TV.

O que aconteceu com a maioria dos trabalhadores depois da construção de Brasília?
Construção da Torre de TV, em Brasília, em 1958 (Arquivo Público do DF)

O G1 conversou com pioneiros que ergueram esses prédios. Nenhum deles viu o corpo de um colega ser encerrado em concreto, mas todos se diziam capazes de assegurar que esse tipo de ação era tomada. O relato comum aponta que, como as atividades não podiam parar, havia um velório simbólico e o canteiro de obras seguia normalmente depois de concretar mais um corpo.

Não há confirmação oficial de que esses corpos estejam nas fundações de Brasília. Mesmo os relatos de acidentes são historicamente desprezados. “Do ponto de vista da construção da cidade, isso é apenas um episódio. Não tem a menor importância”, disse o urbanista Lucio Costa ao ser questionado pelo cineasta Vladimir Carvalho sobre os acidentes de trabalho nos canteiros de obras no documentário “Conterrâneos velhos de guerra”.

O que aconteceu com a maioria dos trabalhadores depois da construção de Brasília?
O presidente Juscelino Kubitschek e o urbanista Lucio Costa visitando terreno onde seria Brasília (Arquivo Público do DF)

Queda de 12 metros

O presidente do Clube dos Pioneiros de Brasília, Roosevelt Beltrão, de 77 anos, chegou a Brasília em 1958, dois anos antes de a capital existir. “Haviam colunas de até 12 metros nas quais os operários trabalhavam. Não tinha segurança nenhuma, eles acabavam caindo, morriam e ficavam por lá mesmo. Não dava para parar os trabalhos, por isso era tudo feito a galope”, conta.

O presidente do Clube dos Pioneiros de Brasília, Roosevelt Brandão (Marcelo Cardoso/G1)

“O presidente tinha a meta de entregar a capital em abril de 1960. Conseguiu.”

Os relatos coincidem com o que foi levantado pelo pesquisador Hélio Queiroz, autor de um livro sobre a história de Brasília. Ele estimou que a construção dos prédios principais e os anexos da Esplanada dos Ministérios registrou, em média, três acidentes de trabalho por dia.

O que aconteceu com a maioria dos trabalhadores depois da construção de Brasília?

Já o Congresso Nacional era chamado pelos trabalhadores simplesmente como “o 28”, em referência ao número de andares. O ex-funcionário da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) Rodolfo Nogueira (esquerda), de 82 anos, diz ter “total consciência” de que as mortes ocorriam nos andaimes e acabavam abafadas. “Não conheci ninguém, mas lembro dos comentários que ouvíamos na Novacap.”

Mito ou verdade?

A falta de provas capazes de confirmar – ou negar – os sepultamentos nas fundações dos prédios públicos reflete a demora para que depoimentos dos trabalhadores começassem a ser ouvidos oficialmente. “Só na década de 1980 é que tomamos conhecimento dessa realidade, quando começamos a sistematizar os depoimentos dos operários, que foram deixados de lado pela história oficial”, afirma o historiador Deusdethi Júnior, professor do UniCeub.

“A história de Brasília é uma história oficial, tenta criar valores e significados. Ela só conta com heróis, aqueles que tomaram grandes decisões. Os operários foram esquecidos.”

Ainda que não haja dados oficiais nem levantamentos a respeito disso, “não é o caso de colocar em dúvida o depoimento dessas pessoas”, diz Deusdethi. “Esta não é uma construção coletiva gratuita, uma ideia falsa. Por mais que não haja evidências significativas de que os corpos estejam enterrados no concreto, as relações de trabalho foram levadas ao extremo.”

O ministro da Saúde Mário Pinotti diz que "candango suporta 12 a 14 horas de trabalho diário" (Reprodução)

Tais relações podem ser resumidas por uma declaração dada pelo então ministro da Saúde, Mário Pinotti, em 4 de fevereiro de 1960. Na reta final da construção de Brasília, o político disse ao Jornal do Comércio que "o candango suporta 12 a 14 horas de trabalho diário" depois de ter sido "liberto da malária, da bouba, do tracoma, das verminoses e melhor alimentado".

A tensão naqueles tempos era alta e ultrapassava os canteiros de obras. Em 12 de dezembro de 1960, oito meses depois da inauguração da capital, o deputado federal Gurgel do Amaral foi à tribuna denunciar espancamentos sofridos por operários, “muitas vezes sem culpa maior do que uma simples embriaguez” e relatou que “até unhas de presos têm sido arrancadas a alicates”.

A embriaguez era uma das fugas terrenas de homens que, de repente, se viam longe de casa e sem emprego. Em 2 de junho de 1960, o jornal O Globo relatou que os operários demitidos “no mesmo dia em que são afastados já não podem dormir no acampamento do instituto”. O guarda, na porta, não os deixava entrar. “Ficam ao relento, alguns com doenças graves, inclusive varíola".

Sem nem cemitério

Apenas na construção do Congresso Nacional, morreram 37 operários, segundo relatos da imprensa na época – que não deixam claro onde eles foram enterrados. A dúvida se dá porque demorou a existir um cemitério “oficial” no centro da cidade, "apesar de as epidemias liquidarem diariamente crianças e adultos", segundo reportagem de 22 de outubro de 1960 no Diário de Notícias.

O que aconteceu com a maioria dos trabalhadores depois da construção de Brasília?

No primeiro ano de Brasília, o Campo da Esperança, na Asa Sul, ainda não havia sido consagrado e fazia apenas enterros “em cova rasa”. As outras opções eram os cemitérios em Planaltina e Taguatinga. Para que fosse concretizado o sepultamento, o prefeito Israel Pinheiro tinha de emitir uma uma autorização especial, pois a cidade não tinha inaugurado nenhum cartório capaz de fazer registros de óbito.

Nos primeiros 50 dias de inauguração da cidade, foram registrados 154 casos de morte violenta. Para esses, era necessário providenciar coroa de flores em Goiânia num tempo em que Brasília não tinha nem luvas para exames cadavéricos.

O que aconteceu com a maioria dos trabalhadores depois da construção de Brasília?
Construção da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em 1959 (Arquivo Público do DF)

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Créditos:

Reportagem: Braitner Moreira, Letícia Carvalho e Marcelo Cardoso (estagiário)
Edição: Braitner Moreira e Maria Helena Martinho
Pesquisa em vídeo: Jônatas Barbosa
Arte: Katia Mainardi

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O que aconteceu com os trabalhadores que construíram Brasília?

Muitos trabalhadores morreram, entre eles dois operários soterrados durante a construção da Universidade de Brasília. No local do acidente foi construído o auditório que hoje se chama “Dois Candangos”.

Como ficaram conhecidos os trabalhadores da construção de Brasília?

Os trabalhadores que a fizeram ficaram conhecidos como candangos. A cidade foi inaugurada em 21 de abril de 1960.

Onde os trabalhadores da construção de Brasília viviam?

Os primeiros trabalhadores que chegaram em Brasília em meados de outubro de 1956 vieram de Belo Horizonte por ordem do engenheiro Roberto Pena para trabalhar na construção do Catetinho. Aqui eles se abrigavam das fortes chuvas do cerrado em barracas cedidas pelo Exército.

Como está atualmente a Cidade Livre local que acolheu os trabalhadores para a construção de Brasília?

Hoje a Cidade Livre vive uma realidade bem diferente, a população está bem servida dos serviços básicos, o bairro foi tomado por diversos comércios, e se antes eles precisam sair do bairro para resolver situações do dia a dia, atualmente praticamente tudo se encontra na região.