O mínimo existencial pode ser compreendido a partir da conjugação entre

Carlos Augusto Daniel Neto
Doutorando em Direito Tributário na USP. Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Professor-Assistente da Pós-graduação do IBDT. Conselheiro Titular da 3ª Seção do CARF. São Paulo (SP). Piauí (PI). E-mail:

Resumo. O presente artigo tem o objetivo de demonstrar que a inferência normativa não é absoluta, mas derrotável, e que essa condição é presente em regras tributárias, com foco específico na chamada “proteção do mínimo existencial”. Pretende-se sustentar que esse princípio não tem a natureza de imunidade tributária implícita, mas de condição de derrotabilidade e, com isso, submetê-la às condições substanciais e procedimentais de sua aplicação ao caso concreto, visando dar um ganho de controle nas hipóteses de sua aplicação.

Palavras-chave: mínimo existencial, derrotabilidade, regras tributárias, imunidade implícita

Abstract.

This paper aims to demonstrate that the rules inference is not absolute, but defeasible, and that this condition is present in tax rules, with specific focus on the so-called “protection of the existential minimum”. It is aimed to support that this principle does not have the nature of an implicit tax immunity, but a defeasibility condition and thereby subject it to substantial and procedural conditions of its application in the concrete cases, aiming to provide a control gain in the event of their application.

Keywords: existencial minimum, defeasibility, tax rules, implicit tax immunity

Introdução

Este trabalho tem o objetivo de propor uma reflexão acerca da compatibilidade do fenômeno da derrotabilidade de regras jurídicas com o Direito Tributário e seu regime jurídico específico, de modo a demonstrar a insuficiência das descrições tradicionais do raciocínio jurídico, envolvendo subsunções e deduções, para a solução de questões tributárias que configurem experiências recalcitrantes, na terminologia de Frederick Schauer.

Com essa reflexão, objetivamos demonstrar que o chamado “mínimo existencial”, qualificado pela doutrina como uma imunidade implícita, ou como um limite ao princípio da atividade tributária do Estado, na verdade é um conjunto de circunstâncias fáticas que podem ser consideradas, em um raciocínio jurídico holístico, para o estabelecimento de exceções implícitas à regra tributária no momento de sua aplicação, derrotando a inferência entre a hipótese e a consequência.

Essa demonstração será suficiente para justificar a impossibilidade de se definir um conteúdo objetivo para o mínimo existencial, em razão do seu conteúdo necessariamente aberto a circunstâncias fáticas futuras e imprevisíveis, bem como para uma demonstração analítica do raciocínio judicial envolvido em sua aplicação a um caso concreto.

Partimos da ideia de que o modelo decisional mais adequado à compreensão do Direito é o Positivismo Presuntivo, aquele que preserva o formalismo advindo de um sistema baseado em regras, mas que mantém uma abertura ao conflito entre regras e princípios, como forma de estruturação da coerência sistêmica em sua dimensão material, bem como para a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte e persecução das finalidades estatais.

Sobre esta base, demonstramos o equívoco de sustentar uma isomorfia entre leis naturais e regras jurídicas, no tocante à força das inferências assumidas, através da demonstração de que a lógica apta a descrever o Direito não possui o atributo da monotonicidade, e assim, traçaremos as linhas básicas de descrição do fenômeno da derrotabilidade, com a apresentação de um modelo de caracterização das suas condições, proposto por Humberto Ávila, abrangendo dimensões material e formal da sua determinação.

A partir daí, a exposição se centrará na configuração que tem recebido o mínimo existencial na doutrina e na jurisprudência, como forma de demonstrar que a mesma se adéqua à condição de derrotabilidade de regra tributária, e não como limite objetivo ou imunidade implícita.

A Derrotabilidade das Regras Jurídicas

Tradicionalmente, entende-se que a imputação de um vínculo entre uma hipótese fática e uma consequência, por força de um ato de autoridade decorrente de fontes sociais, garante que sempre que ocorrer o fato previsto naquela hipótese, deverá ser também a consequência prevista – em um paralelismo com as leis naturais 1.

Tal posição encontra forte guarida dentro da ciência do Direito Tributário, como corolário de uma dimensão do princípio da legalidade 2, que reflete uma vinculação inescapável dos fatos geradores realizados às consequências previstas nas normas jurídicas tributárias, como corolário da determinabilidade e tipicidade que ostentam.

Todavia, tal entendimento não parece ser o mais adequado à explicação do fenômeno da aplicação do Direito e isso se dá, em larga medida, pela derrotabilidade 3 (defeasibility) das regras jurídicas 4 – a possibilidade da inferência normativa ser derrotada a partir das circunstâncias fáticas de aplicação daquela norma, suficientes ao estabelecimento de uma exceção não prevista no Direito Positivo.

A expressão foi utilizada originariamente, no Direito, por Herbert Hart em uma monografia denominada The ascription of responsability and rights 5, para nomear o fenômeno da existência de condições implícitas que possam afastar a pretensão de validade de um contrato, mesmo quando todas as condições que normalmente o qualificariam como tal estejam presentes.

Para Hart, toda regra estaria sujeita a uma cláusula unless, que representaria a possibilidade de abertura da regra a circunstâncias excepcionais, impossíveis de serem listadas ex ante, capazes de derrotar uma determinada pretensão jurídica 6. Explicando essa abertura, Jordi Beltrán e Giovanni Ratti explicam que as inferências jurídicas não são dedutivas por natureza, mas retratáveis ou ampliáveis, de modo que elas se mantêm apenas nos casos que não surjam argumentos fortes o suficiente em favor da sua derrota 7.

À guisa de exemplo, vale analisar o REsp n. 1.390.345/RS 8. Trata-se do caso de um portador de necessidades especiais que pleiteou a isenção de IPI para aquisição de automóvel prevista no art. 1º, IV, da Lei n. 8.989/1995, que tinha a condição temporal de poder ser concedida uma única vez a cada dois anos, contado da aquisição (art. 2º). O pedido se fundamentou no fato de antes do término desse prazo, ter tido o veículo roubado, circunstância esta não prevista pela regra geral de concessão das isenções. A 1ª Turma do STJ entendeu que para realizar a finalidade subjacente à norma – de proteção da dignidade da pessoa humana – a limitação temporal deveria ser afastada diante das circunstâncias do caso concreto.

Prosseguindo, esse fenômeno atraiu a atenção dos teóricos do Direito no sentido de buscar meios de representar formalmente a estrutura de uma regra derrotável, haja vista que praticamente todos os estudos de lógica até início da década de 80 eram baseados na lógica clássica, de caráter monotônico 9.

A falência da monotonicidade 10 do raciocínio jurídico implicou, naturalmente, igual destino às leis lógicas do modus ponens e do reforço do antecedente – que garantiam que uma vez definida uma inferência P ® Q (dever ser que se P então Q), independentemente do acréscimo de novos elementos no descritor da inferência, o valor de verdade do inferido seria sempre mantido.

Isso trouxe a necessidade do desenvolvimento de uma nova lógica, adaptada a partir dos estudos de inteligência artificial, para descrever o raciocínio jurídico: a lógica não monotônica.

A construção de esquemas de raciocínio jurídico, ligando razões a conclusões, está fortemente conectada à ideia de preservação do valor de verdade através de estruturas lógicas 11 – é dizer, o valor de verdade será preservado (truth-preservation) sempre que a verdade das premissas garantir a verdade das conclusões, em um determinado esquema de raciocínio.

A monotonicidade é um fator da relação de consequência lógica, que envolve um conjunto P de elementos, denominados premissas, e um conjunto S, denominado de conclusões. A lógica clássica é monotônica, pois atende à seguinte propriedade: Se P ® S e P Í ∆, então ∆ ® S. Isso quer dizer que se o conjunto de elementos P implica a consequência S, e esse conjunto está contido em outro conjunto ∆, isso garante que deste último se possa inferir a consequência S, independente dos outros elementos que possam compô-lo.

A lógica será não monotônica quando não possuir essa propriedade. É dizer, essa lógica permite a situação em que o conjunto S é consequência do conjunto P, mas não é consequência de um superconjunto ∆ no qual P está contido, o que é exatamente o que ocorre nos casos de derrotabilidade.

Há um preconceito disseminado entre os juristas (ainda que há muito abandonado pelos lógicos) de que a lógica válida será apenas aquela que permita a truth-preservation, o que não se confirma diante da reconhecida validade de lógicas não monotônicas para lidar com determinadas questões cognitivas, ainda que não possua essa propriedade de preservação do valor de verdade.

Desse modo, o que se propõe é que, na linha sustentada por Jaap Hage, deve-se falar em transmissão de justificação, em substituição à ideia de transmissão de verdade. Desse modo, a lógica não monotônica é o ponto de partida do Estudo dos Standards para aceitação racional de argumentos 12. Dessa linha não discrepa Humberto Ávila, ao propor novas funções para a Ciência do Direito:

“E, por fim, a Ciência do Direito pode exercer as atividades de adscrever e reconstruir significados, mantendo uma base empírica, mas mudando os critérios que o discurso deve preencher para ser considerado científico, no sentido de sério, racional e controlável. Um dos caminhos é a substituição dos critérios de objetividade semântica e de verdade por correspondência, inadequados para o Direito, pelos critérios de objetividade discursiva e de verdade por coerência, a serem conjugados com outros, na luta contra o obscurantismo interpretativo.” 13 (Destaques nossos)

De fato, em um modelo de raciocínio como o jurídico, sujeito ao acréscimo de novas informações que revisem as conclusões inicialmente alcançadas, e sujeito também aos constrangimentos de critérios de objetividade discursiva, é natural que não se busque uma verdade correspondente à realidade das coisas, mas uma verdade coerente com as informações e os argumentos presentes no discurso.

Mais do que uma recompreensão da lógica que orienta o raciocínio jurídico, a compreensão da derrotabilidade na aplicação de regras jurídicas passa pelo modelo de decisão adotado. Nesse sentido é a advertência de Frederick Schauer no sentido de que a derrotabilidade não é uma propriedade das regras em si, mas uma característica de como o sistema decisório (ou modelo de decisão) as tratará 14.

A respeito dos modelos de decisão, não faltam propostas teóricas competentes para descrevê-los 15. Todavia, pelos limites do escopo do trabalho, cumpre salientar que, adotando a tipologia proposta por Frederick Schauer, entendemos que o modelo mais adequado ao Estado de Direito à função da regra de distribuição de poderes dentro de uma estrutura jurídica é também aquele no qual o estudo da derrotabilidade assume seu pleno sentido. Trata-se do chamado positivismo presuntivo. A compreensão desse modelo decisório passa por uma breve explanação do papel das regras no sistema jurídico.

As regras 16 são, sem sombra de dúvida, o elemento mais importante de qualquer ordenamento jurídico moderno. A sua obediência deve-se, em primeiro lugar, apenas pela sua “natureza de regra” (ruleness), caráter de regra exarada por uma autoridade dotada de poder para tanto. Além disso, as regras exercem uma série de funções essenciais à estrutura normativa: (i) elas têm a função de pré-decidir certos conflitos, afastando a incerteza e representando a eliminação de controvérsias sem os custos que uma resolução judicial implicaria; (ii) têm a finalidade de reduzir ou eliminar a arbitrariedade que pode surgir em um modelo particularista, com a aplicação direta de valores morais; (iii) têm o condão de evitar problemas de coordenação, deliberação e conhecimento no processo de aplicação do Direito 17.

Importa dizer, portanto, que as regras restringem as opções de decisão do julgador. E mais, essas limitações derivam, na maior parte dos casos, da linguagem utilizada na formulação da regra, elaborada pelo legislador 18 – a literalidade 19 do texto se apresenta como um sentido prima facie a ser aplicado.

Parece-nos que somente se pode falar em derrotabilidade dentro de uma concepção de regra que comporte instanciações prima facie para os textos normativos, vinculadoras do responsável pela decisão na aplicação, e que possam ser legitimamente aplicadas em situações normais, ainda que sujeitas a exceções, em casos excepcionais – casos em que a solução se dá considerando todas as razões (all things considered) 20.

As regras gozariam de autonomia semântica em relação à sua justificação subjacente, haja vista que o significado das instanciações que as compõem não se explica completamente por referência aos propósitos pelos quais se ditou a regra 21, mas pela linguagem utilizada pelo legislador.

A relevância desse ponto decorre da importância dessa autonomia semântica para a determinação das condições de ocorrência da derrotabilidade de uma regra jurídica.

Pontuando brevemente as condições sob as quais as regras podem ser superadas, deve-se partir da relação entre o sentido prima facie delas e da justificação subjacente, isto é, a finalidade que orientou o estabelecimento de uma generalização através da criação de uma regra.

Quanto mais bem elaborada for a redação da regra, mais as suas instanciações serão compatíveis com a sua justificação. Todavia, é natural de qualquer generalização legal que essa compatibilidade não seja plena – a percepção desse vício inerente às generalizações remonta aos primórdios da Filosofia, nas lições de Aristóteles 22, ao afirmar a necessidade de correção da justiça legal, porque algumas questões de ordem prática exigiam mais do que a generalidade da lei, pela riqueza de elementos pertinentes que o legislador não tinha como considerar no texto legislado.

Sobre isso, Schauer faz a distinção entre regras sobreinclusivas ou subinclusivas 23. As primeiras seriam aquelas que abrangem casos que não seriam cobertos, caso a justificação fosse aplicada diretamente – por exemplo, veja-se o caso dos setores cujo recolhimento da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta era mandatório, com a finalidade de desonerar tributariamente essas atividades, mas que acabou prejudicando certas empresas e cooperativas que utilizavam uma quantidade inexpressiva de mão de obra para obter uma elevada receita.

A regra do segundo tipo (subinclusiva) é aquela que o conteúdo da regra fica aquém do que a justificação pretendeu atingir. Exemplo disto é o rol de doenças que dá ensejo à isenção no Imposto de Renda – nesse caso, a finalidade do legislador foi beneficiar os portadores de doenças graves, mas ao estabelecer um rol, acabou por deixar de fora doenças igualmente, ou até mais, graves.

Essa sobre e subinclusão das regras em relação à justificação subjacente, explica Larry Alexander, é um produto das generalizações entrincheiradas 24 típicas das regras – caso essas generalizações não gozassem dessa característica, elas poderiam ser desconsideradas diante de qualquer razão em sentido contrário, convertendo as regras em meras rules of thumb de um particularismo decisório 25.

Essa digressão acerca das regras é relevante para que se possa expor o que caracteriza o modelo de decisão do Positivismo Presuntivo. É precisa a síntese de Schauer a esse respeito:

“O positivismo presuntivo é uma forma de descrever a interação entre um subconjunto de regras dotadas de pedigree e um pleno (e sem pedigree) universo normativo, de modo que o primeiro seja tratado por certos tomadores de decisões como presumivelmente no controle em um não necessariamente epistêmico senso de presunção. Como resultado, os tomadores de decisões superam uma regra do conjunto dotado de pedigree não quando eles acreditam que a regra gerou um resultado errôneo ou subótimo no caso, não importa o quanto fundamentado a crença, mas sim quando, e somente quando, as razões para superação são percebidas pelos tomadores de decisões como particularmente fortes.” (Tradução livre) 26

Assim, esse modelo de decisão preserva a autoridade das regras, através da preservação do seu sentido prima facie ainda que a solução dada seja suboptimal em relação àquela que seria dada pela justificação, se aplicada diretamente (com maior custo e maior risco de arbitrariedade), e dá a devida consideração à dimensão formal do Direito. Todavia, ainda assim abre espaço à possibilidade do julgador afastar a aplicação da regra, derrotando-a, nos casos em que haja razões particularmente fortes.

Isso leva à interessante conclusão de que nem toda norma incidente é aplicável. Humberto Ávila 27 afirma que é preciso diferençar a aplicabilidade de uma regra das condições previstas em sua hipótese – uma regra é aplicável a um caso se suas condições são satisfeitas e a sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária 28.

Esse modelo de decisão é, portanto, aberto a juízos de equidade – mas apenas diante de distorções graves na aplicação, que demanda a prática da derrotabilidade das regras como um corretivo da lei nas situações em que esta seja injusta o discrepe de sua justificação pela sua generalidade.

Dessa forma, com a razão Eros Grau ao afirmar que a norma de decisão se presta a transgredir o texto legal 29, no sentido de tomá-lo como padrão da decisão, contudo de modo que ele seja adequado à realidade e ao caso: “E assim as coisas se passam porque a transgressão que marca os movimentos do modo de produção social no mundo do ser se reproduz – tenham ou não consciência disso os juízes – no mundo do dever-ser” 30.

Expostos os pontos centrais caracterizadores do Positivismo Presuntivo, modelo que reputamos mais adequado à estruturação do Direito brasileiro, e no qual melhor se desenvolve a noção exposta anteriormente de derrotabilidade de regras, deve-se passar para dois questionamentos metodológicos extremamente relevantes, quais sejam: quais as condições para a ocorrência da derrotabilidade e o que determina o grau de entrincheiramento da regra (ou a sua resistência à superação).

As Condições da Derrotabilidade de Regras

Até o presente momento, foi sustentado que as regras jurídicas devem ter o seu sentido prima facie privilegiado, em razão das vantagens que esse formalismo traz na aplicação do Direito, mas que essa prevalência não é absoluta, podendo ser afastada a inferência, no raciocínio jurídico, diante de condições excepcionais que justifiquem que se supere o caráter entrincheirado da regra para aplicar diretamente a sua justificação subjacente ao caso concreto.

Desse modo, o ponto subsequente do trabalho é discutir quais as condições, ou quais os elementos caracterizadores dessas condições, que justificam a derrotabilidade das regras. A questão, por si só, seria suficiente para longas reflexões, mas diante do escopo do trabalho, utilizaremos como hipótese de trabalho a proposta feita por Humberto Ávila para modelo de caracterização desses elementos de superação:

“O modelo ora proposto tem duas características. Primeira: é bidimensional, no sentido de ser material e procedimental ao mesmo tempo. Material, porque condiciona a superação de regras ao preenchimento de determinados requisitos de conteúdo. Procedimental, porque condiciona a superação de regras à observância de requisitos de forma. Segunda: é criterioso, na medida em que não procura apenas analisar se as regras podem, ou não, ser superadas, mas quando e mediante a implementação de que condições elas podem ser superadas.” 31 (Destaques nossos)

A dimensão material de caracterização dessas condições está estritamente ligada às características de um sistema jurídico baseado preponderantemente sobre regras jurídicas – é dizer, se as regras trazem para o Direito previsibilidade, segurança e eficiência na adjudicação de soluções normativas, a derrota da regra está condicionada à manutenção, tanto quanto possível, desses valores 32.

Mais do que a manutenção dos mencionados valores, entendemos que um elemento da condição apta à derrota de uma regra é o fato da não aplicação da mesma conduzir a um ganho de coerência material/substancial no sistema jurídico.

A coerência substancial é condicionada positivamente pela existência de uma relação de dependência recíproca entre as proposições e pela existência de elementos comuns – quanto mais intensamente esses elementos estiverem presentes, tanto maior será a coerência sistêmica 33. Um corolário desse postulado de coerência é uma alteração nas relações entre as normas, atuando simultaneamente umas sobre as outras – nas palavras de Ávila, “a eficácia, em vez de unidirecional, é recíproca” 34.

Nesse sentido, Peczenik ressalta que as ponderações envolvidas na superação de uma regra tem caráter holístico por considerar todas as razões relacionadas à aplicação do Direito ao caso concreto, e que tal procedimento, realizado pelo julgador, se aproximaria de um particularismo ético, já que as concepções deste que seriam o padrão da ponderação 35.

Todavia, ele afirma que essa ponderação somente será válida se for direcionada a uma reconstrução racional do Direito, isto é, se conduzir a um ganho de coerência no sistema jurídico, pela articulação justificada da relação entre os elementos dele 36.

Um exemplo pode esclarecer nosso ponto. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgou a Apelação Cível n. 500181123.2013.404.7107/RS, que tratou do caso de uma cooperativa agroindustrial que passou a recolher a contribuição previdenciária sobre a receita bruta (CPRB) a partir da Lei n. 12.546/2011, e que se insurgiu por conta da medida de desoneração do Governo Federal, que diante do seu modelo de negócios praticado, acabava por onerá-la demasiadamente, comprometendo a sua competitividade e crescimento econômico (finalidades previstas para as medidas da Lei n. 12.546/2011).

Diante desse caso, o TRF da 4ª Região criou uma lacuna axiológica a partir da dissociação entre os casos em que a finalidade da lei era atendida e os casos em que essa finalidade não era atendida, para dar solução normativa distinta para estes últimos, com a derrota da regra que impunha o regime de tributação da receita bruta, e o retorno ao regime anterior de recolhimento.

Pode-se verificar claramente que, conquanto haja uma quebra na previsibilidade da solução normativa, há um ganho de coerência no sistema, pois a cooperativa passou a ser tratada com isonomia, pela consideração de elementos de sua constituição (pouca mão de obra e alta receita) que determinavam um tratamento diferente daquelas outras beneficiadas pela Lei n. 12.546/2011. Pode-se dizer, portanto, que o afastamento da regra gerou um incremento geral de racionalidade do sistema jurídico, pela realização em maior medida das finalidades específicas da lei mencionada, ao passo que realiza também, em maior medida, a igualdade, princípio central do Direito.

Humberto Ávila estabelece em seu modelo que o grau de resistência de uma regra está vinculado tanto à promoção do valor subjacente à regra (valor substancial específico) quanto à realização do valor formal subjacente às regras (valor formal de segurança jurídica). Além disso, deve-se considerar o grau de promoção do valor segurança, em razão da possibilidade de reaparecimento frequente de situação similar, demandando igual superação da regra – deve-se considerar se a realização da justiça individual não gerará grave insegurança ou incoerência sistêmica, comprometendo também a realização de justiça geral.

Conjugando esses fatores, o autor mencionado afirma que “a resistência à superação de uma regra será tanto maior quanto mais importante for a segurança jurídica para a sua interpretação” 37. A opinião é precisa: o limite da derrotabilidade das regras está ligado à preservação das características que justificam o papel central que a regra ocupa na estruturação do sistema jurídico.

Além da dimensão material, Ávila aborda também os requisitos procedimentais de configuração das condições de derrotabilidade.

Primeiramente, a superação da regra deverá ter uma justificação condizente, que envolve a demonstração da existência de uma experiência recalcitrante (a incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente, diante de um caso concreto), e a demonstração de que o afastamento da regra não conduzirá a uma incoerência material ou causará expressiva insegurança jurídica 38.

Em segundo lugar, a superação deverá ter uma fundamentação condizente, isto é, é preciso exteriorizar de modo racional e transparente as razões que permitam a derrota da regra. E em terceiro lugar, é necessária uma comprovação condizente, com prova de que o afastamento da aplicação da regra não aumentará excessivamente as controvérsias, nem gerará problemas de coordenação e aumento dos custos de deliberação e decisão 39.

Pois bem, a preocupação metodológica de Humberto Ávila enriquece a análise do tema, pelo estabelecimento de parâmetros para análise da justificação racional, tanto material quanto formal, para a superação de uma regra. Um novo exemplo deve esclarecer esse ponto, ilustrando como esse modelo pode ser aplicado.

O 2º Conselho de Contribuintes, julgando o Processo Administrativo n. 13052.000066/99-40, em 21 de março de 2001, enfrentou o caso de uma empresa optante do SIMPLES e, portanto, sujeita à proibição de importação de qualquer produto estrangeiro, salvo se destinado ao ativo permanente da empresa, que importou, na ocasião, nitrato de ferro (que não era disponível no mercado nacional) necessário à sua produção de pedras semipreciosas – o que culminou na sua exclusão do regime.

No seu voto, o Conselheiro Adolfo Montelo demonstra a existência de uma experiência recalcitrante decorrente da sobreinclusão da regra proibitiva da importação, que tinha por finalidade declarada impedir a entrada de produtos estrangeiros para comercialização, enquanto no caso em comento se trata de insumo necessário à produção de pedras preciosas, demonstrando-se a excepcionalidade da situação pela indisponibilidade do produto no mercado nacional e a ausência de razoabilidade na manutenção da proibição, pois geraria incoerência substancial com o sistema jurídico.

Diante do caso, a exclusão do SIMPLES foi corretamente revertida por aplicação do critério de razoabilidade, derrotando-se a regra proibitiva e a aplicação da sanção.

Por fim, cumpre frisarmos que entendemos serem todas as regras potencialmente derrotáveis 40 – o que muito difere de afirmar que qualquer regra está sujeita a ser superada em qualquer situação. Optamos por essa posição por dois motivos: primeiro, impossibilidade de se propor aprioristicamente a impossibilidade de derrota na aplicação de qualquer norma, pelo desconhecimento de circunstâncias futuras que possam ser consideradas exceções implícitas, e segundo, pela ausência de um critério objetivo que determine um conjunto de normas derrotáveis.

Nesse sentido, explica Fernando Andreoni Vasconcellos o chamado “paradoxo da exceção principiológica implícita”:

“Se não é possível definir a priori os casos gerais em que um princípio se sobrepõe a outro, e considerando que os princípios podem excepcionar normas jurídicas, logo, não se pode antecipar quais as exceções implícitas (principiológicas) podem afetar o campo de aplicação de qualquer norma.” 41

Pois bem, feita a devida introdução do tema da derrotabilidade e sua condição, cumpre agora adentrar propriamente na temática tributária, especificamente no chamado limite do mínimo existencial, habitualmente oposto à atividade tributária como forma de barrá-la, sob certas circunstâncias.

O Mínimo Existencial como Limite à Tributação

Desde a assunção do caráter eminentemente jurídico da atividade tributária, com o advento do Estado de Direito, as balizas dentro das quais as cobranças dessa natureza ocorreriam foram uma preocupação constante. Durante séculos, buscaram os economistas e os tributaristas determinar de que forma a estrutura e a justificação cada uma das exações fiscais determinaria os limites de sua intromissão no patrimônio particular do cidadão.

De uma forma geral, pode-se afirmar que os parâmetros de tributação evoluíram de uma vinculação inicial à noção de Justiça Comutativa para se adaptar à Justiça Distributiva 42, marcando a transição do Estado Liberal para o Estado Social. Em termos mais específicos, pode-se dizer que se passou de uma concepção de custo-benefício 43 (a chamada Teoria do Benefício), através da qual o cidadão deveria arcar com mais tributos na medida em que demandasse mais gastos públicos, à ideia de Solidariedade Social, que determinava que cada um contribuiria de acordo com as suas possibilidades, para garantir as prestações positivas por parte do Estado para os mais necessitados 44.

Hodiernamente, todavia, vive-se um momento de síntese entre as duas modalidades limítrofes de justificação da carga tributária, em favor de, por um lado, garantir as condições materiais mínimas a todos os cidadãos, e por outro, fugir dos abusos tributários perpetrados com base na solidariedade social. Tal pensamento, cuja origem moderna é encontrada na escola da Public Choice, capitaneada por James Buchanan, se preocupa com o financiamento de atividades públicas através das contribuições daqueles que se beneficiam direta ou indiretamente dessa atividade, que atendem a uma solidariedade de grupo 45.

Como dito antes, toda essa preocupação com a legitimação da tributação está estritamente ligada à definição de seus limites, ganhando relevo a ideia de capacidade contributiva como parâmetro da tributação justa e o seu confronto com os direitos fundamentais do contribuinte. Em uma definição negativa desse princípio, Torres qualifica-o como “o espaço jurídico aberto pelos direitos fundamentais para a tributação” 46.

É dizer, conquanto titular do poder de tributar, o Estado se torna também responsável pela preservação da liberdade do cidadão, de modo que a sua liberdade na instituição de tributos se encontra moderada pelo princípio da capacidade contributiva (das Leistungsfähigkeitsprinzip als freiheitsschonendes Besteuerungsprinzip) 47.

O chamado “mínimo existencial” é produto da tensão constante entre a tributação e os direitos fundamentais. Ele é compreendido pela doutrina 48 como uma limitação constitucional ao poder de tributar relacionada à necessidade de preservação de uma existência humana digna (no dizer de Jeremy Bentham, “indigence may protect us from paying the tax” 49).

A discussão da sua existência e seu conteúdo conduz, em suas linhas fundamentantes, o embate entre duas teorias que buscam explicar a relação entre a propriedade e o tributo – as teorias consequencialistas e as deontológicas. Conforme descrito por Liam Murphy e Thomas Nagel, de forma geral:

“Segundo as teorias consequencialistas de justificação, o critério máximo para a avaliação de um curso de ação ou de uma instituição é o valor de suas consequências globais – os benefícios menos os custos, para todos os afetados. Segundo as teorias deontológicas, existem outros critérios, independentes das consequências globais, que determinam como o governo pode ou não tratar as pessoas. Esses critérios identificam os direitos individuais, as exigências da imparcialidade ou da igualdade de tratamento, a proibição das discriminações arbitrárias etc. e prescrevem o que se deve e o que não se deve fazer de um modo que, pelo menos em parte, independe das consequências.” 50

Ambas reconhecem a existência de direitos, mas as teorias consequencialistas negam que eles sejam moralmente fundamentais, justificando-os apenas pelo benefício global que gerem em um sistema que os reconheça, enquanto que para as teorias deontológicas, a fundamentalidade de certos direitos ultrapassa até os limites do Estado, agregando-se à própria condição humana.

Em se tratando do direito de propriedade, as teorias deontológicas que mais se destacam são as de John Locke, e modernamente de Robert Nozick 51, que sustentam que certos direitos individuais, inclusive o de propriedade, são decorrências da soberania do sujeito sobre si mesmo, incluindo o direito de autodeterminação e de autodesenvolvimento através do exercício das próprias capacidades – “os direitos de propriedade são substancialmente moldados por um direito de liberdade individual que não precisa de uma justificação consequencialista” 52. Doutro giro, as teorias consequencialistas, com origem na obra de David Hume 53, defendem que a legitimidade do direito de propriedade se dá pelo benefício que a existência de um conjunto de leis que o regulem, trazendo benefícios para a sociedade em geral.

Somos partidários de uma teoria consequencialista moderada, nos moldes propostos por Nagel e Murphy, no sentido de que a regra de tributação deve ser imposta a todos, mas com uma abertura, através de cláusulas de equidade, para a proteção do mínimo existencial diante do caso concreto:

“Na nossa opinião, que logo se evidenciará, os direitos de propriedade são convencionais, mas em sua concepção e justificação há espaço para a inserção não só de valores consequencialistas, mas também de outros direitos e valores deontológicos que, este sim, são mais fundamentais.” 54

Desse modo, por mais que se considere a propriedade como uma convenção nascida junto com o Estado, ela passa a ser vista não como um fim – a acumulação de capital – mas como um meio de realização da dignidade humana, de modo que a possibilidade de uma realização minimamente digna das condições de vida deve ser garantida pela propriedade e protegida de acordo com a sua importância fundamental.

A propriedade, nesses casos, deixa de se relacionar com a capacidade contributiva do ser humano e passa a ser relacionada com a liberdade e dignidade humana. Somente surge capacidade contributiva além desse montante básico, denominado de mínimo existencial. Como o define Ricardo Lobo Torres:

“O mínimo existencial é direito subjetivo protegido negativamente contra a intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente pelas prestações estatais. Diz-se, pois, que é direito de status negativus e de status positivus, sendo certo que não raro se convertem uma na outra ou se coimplicam mutuamente a proteção constitucional positiva e negativa.” 55

O mínimo existencial hoje é acatado pela doutrina tributária como uma garantia do poder de autodeterminação do indivíduo e da sua liberdade de ação. Por outro lado, da mesma forma que esse princípio decorrente do direito de propriedade e da dignidade da pessoa humana limita “para baixo” o âmbito tributário, os mesmos princípios influenciam a proibição do confisco, como um limite “para cima” da atividade tributária 56.

Diversas fundamentações distintas são oferecidas pela doutrina tributária brasileira para a proteção do mínimo existencial.

Uma linha de autores deriva esse princípio de uma série de dispositivos constitucionais que estão relacionados a garantias de prestações positivas do Estado ou de outras instituições para o cidadão, como as normas que garantem direito à saúde e educação, imunizam as instituições de assistência social e as pequenas glebas, garante acesso à justiça etc. 57

Em uma abordagem distinta, outros autores derivam essa proteção do princípio da dignidade humana, haja vista que a tributação pode afetar as condições mínimas de uma existência digna – afirmam, portanto, que o princípio mencionado possuiria uma dimensão de direito de defesa (Abwehrrecht) contra a atividade tributária do Estado, no sentido de tornar imune a faixa de renda correspondente ao mínimo existencial 58.

Apesar das abordagens distintas, duas coisas são constantes: a primeira é de que a proteção do mínimo existencial se dá através de uma imunidade tributária, como limitação quantitativa da capacidade contributiva 59, e a segunda é a dificuldade de determinação das condições materiais que caracterizariam a esfera protegida por esse princípio– nesse sentido, Humberto Ávila menciona alguns elementos consagrados pela jurisprudência alemã como qualificados por essa proteção constitucional, mas ressaltando o caráter indeterminado da expressão “mínimo existencial” 60.

Em primeiro lugar, não podemos deixar de consignar nossa discordância com o caráter de imunidade atribuído à proteção do mínimo existencial. Conforme sintetiza Misabel Derzi, com suporte em parte substancial da doutrina, a imunidade:

“1. é regra jurídica, com sede constitucional;

  1. é delimitativa (no sentido negativo) da competência dos entes políticos da Federação ou regra de incompetência;
  2. obsta o exercício da atividade legislativa do ente estatal, pois nega competência para criar imposição em relação a certos fatos especiais e determinados;
  3. distingue-se da isenção, que se dá no plano infraconstitucional da lei ordinária ou complementar.” 61

Compatível com os elementos definitórios propostos por Misabel Derzi é a definição dada por Paulo de Barros Carvalho, qualificando-a como:

“a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas” 62.

Essa definição parece ser a mais adequada à natureza formal do Direito: ela considera que o sentido das regras de competência somente é tolhido por outras regras igualmente positivadas na Constituição Federal que estabeleçam exceções expressas ao seu conteúdo. Sem dúvida, não parece atentar ao caráter entrincheirado das regras de competência tributária aqueles que sustentam a derivação de imunidades diretamente de princípios e valores consagrados constitucionalmente, como já foi dito anteriormente, assumindo, estes autores, a preponderância dos princípios e valores em seus conflitos com as regras em um plano abstrato.

Essa característica das imunidades tributárias depõe contra a caracterização da proteção do mínimo existencial com tal natureza. Ora, como foi dito acima, não há na Constituição qualquer disposição expressa que consigne a proibição de tributação dessa faixa de renda do contribuinte – o que há são diversos princípios que, articulados pelo sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, permitem derivar a norma em comento, mas, ainda assim, está cingido ao seu caráter principiológico 63 e, portanto, imediatamente finalística, sem pretensão de decidibilidade.

Ora, dentro de um modelo decisório como o positivismo presuntivo não faz sentido afirmar a restrição, em plano abstrato, da abrangência de uma regra constitucional por meio de um princípio constitucional – o que não afasta, todavia, a possibilidade de que, diante de um específico caso concreto, esse princípio justifique o afastamento da eficácia de trincheira da regra e permita a sua derrota no momento da aplicação. Como sustenta Misabel Derzi, com precisão, “Princípio não é imunidade, embora imunidades estejam expressamente consagradas, por causa de valores e princípios fundamentais” 64.

Ora, fôssemos denominar de imunidade qualquer princípio constitucional que afetasse direta ou indiretamente o poder tributário do Estado, deveríamos então renomear o Capítulo I do Título VI da Constituição para “Imunidades Tributárias”, como argutamente colocou Paulo de Barros Carvalho 65.

As imunidades são limitações expressas às competências, são normas determinantes de incompetência tributária dos entes federados 66. Elas afetam a estrutura da regra de competência, reduzindo os poderes que são dados às pessoas jurídicas de direito público, estabelecendo incapacidades (disabilities) 67, de modo que a competência é o produto de duas espécies de regras: (a) as de delimitação positiva do âmbito da competência; e (b) as de delimitação negativa do âmbito de competência – ambas se conjugam de modo a compor o vetor final que a determina, efetivamente 68.

Além disso, outro elemento da definição das imunidades vai à contramão da caracterização do mínimo existencial como tal: a necessidade das imunidades serem limitadas e imediatamente determináveis.

A natureza principiológica da proteção ao mínimo existencial torna-a submissa ao já mencionado paradoxo da exceção principiológica implícita 69 – haja vista que esse princípio de defesa do contribuinte será, a todo ato de aplicação de norma tributária impositiva, ponderado com princípios relativos à fiscalidade do Estado, é óbvia a impossibilidade de determinação apriorística dos casos em que um prevalecerá sobre o outro. Por iguais razões, também é indeterminável o conjunto de situações fáticas excepcionais que justificariam a superação de uma regra tributária pelo princípio de proteção do mínimo existencial, por derivarem já da ponderação entre este princípio e aquele subjacente à regra a ser derrotada.

Além das possibilidades de aplicação da proteção ao mínimo existencial serem ilimitadas, não se trata de uma norma de conteúdo imediatamente determinável – muito pelo contrário! Como se mencionou há pouco, o seu conteúdo depende de múltiplas ponderações axiológicas, da interação entre princípios no plano constitucional e, mais ainda, da consideração de circunstâncias fáticas envolvidas no caso concreto. O seu caráter semântico de conceito jurídico indeterminado é pacificamente afirmado pela doutrina e pela jurisprudência:

“Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda que originariamente não fundamental (direito à saúde, à alimentação etc.), considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não é mensurável, por envolver mais os aspectos de qualidade que de quantidade, o que toma difícil estremá-lo, em sua região periférica, do máximo de utilidade (maximum welfare, Nutzenmaximierung), que é princípio ligado à ideia de justiça e de redistribuição da riqueza social.” 70

No mesmo sentido, ainda no século XIX, Rui Barbosa já sustentava, em seus discursos na condição de Ministro da Fazenda, que o mínimo existencial “se o quisermos determinar precisamente, é uma incógnita muito variável” 71, mas sem negar a importância de considerá-lo na sistemática da tributação 72.

A pragmática desse princípio nas Cortes Constitucionais contribui para infirmar o seu caráter de imunidade. Na Argentina, por exemplo, a Corte 73 decidiu que a confiscatoriedade e a agressão inconstitucional ao patrimônio somente poderiam ser aferidos no caso concreto, como relatado por Liñares Quintana 74; no mesmo sentido, Humberto Ávila nos informa que a Corte Constitucional Alemã 75 entende que ainda que o mínimo existencial seja abstratamente importante, a sua violação só pode ser verificada perante as circunstâncias concretas.

Na Itália, Francesco Moschetti também afirma que o mínimo existencial a ser isentado da tributação deve ser aferido a cada caso, levando em consideração circunstâncias pessoais do contribuinte 76.

Não faz sentido considerar uma imunidade um princípio cujo sentido somente será obtido após a análise das circunstâncias concretas. O fato de o julgador afastar a cobrança de um determinado tributo em razão de uma alegada ofensa ao mínimo existencial não afetará a regra de competência – que permanecerá da mesma forma – mas apenas a incidência daquele tributo para o caso concreto sub judice.

Essa proteção interage normativamente com as regras tributárias no plano da aplicação, e não no âmbito das competências, ainda que seu fundamento decorra de princípios constitucionais.

Por operar no momento da aplicação, considerando as condições pessoais do contribuinte no caso concreto, entendemos que o “mínimo existencial” não corresponde a uma imunidade implícita, ao contrário do que muitos sustentam, mas sim a um conjunto indeterminado de circunstâncias fáticas relativas à capacidade econômica do contribuinte que, ainda que não previstas na lei, têm o condão de derrotar a inferência da regra de incidência. Noutros termos, o mínimo existencial é condição de derrotabilidade de regras tributárias.

Conclusão

Partindo da ideia de que regras jurídicas podem ser derrotadas no caso concreto, mediante circunstâncias fáticas que qualifiquem aquela instanciação específica como uma experiência recalcitrante de alto grau, pretendemos com este trabalho demonstrar que o “mínimo existencial” não corresponde a uma imunidade implícita, como sustentado por grande parcela da doutrina, mas sim a um conjunto indeterminado de condições fáticas que permitem a derrotabilidade de regras tributárias.

Todavia, não se trata de um reparo meramente terminológico. Ao compreendê-la como uma condição de derrotabilidade, podemos submeter a sua verificação prática aos parâmetros de determinação de elementos dessa natureza, como foi abordado no tópico 2.

Em razão disso, a derrota de uma regra tributária para manutenção do mínimo existencial deverá observar as dimensões material e procedimental desta condição, incluindo aí o sopesamento da superação dessa regra com a segurança jurídica do sistema tributário e a manutenção dos parâmetros legais de justiça geral, além de verificar a impossibilidade de generalização da circunstância considerada, sob risco de subverter o sistema de regras, convertendo-o em particularismo.

Mais do que isso, é preciso que se verifique e comprove que a aplicação da proteção do mínimo existencial naquele caso concreto acarretará um ganho de coerência substancial do sistema tributário.

Por fim, submete-se também essa aplicação a condições de sua dimensão procedimental, quais sejam: fundamentação, justificação e comprovação condizentes, conforme dito anteriormente.

Com isso, pretende-se contribuir para que a derrotabilidade de regras tributárias sob essa condição se torne mais criteriosa, com um ganho de controle intersubjetivo de decisões nesse sentido, de modo a determinar quais circunstâncias são relevantes para qualificá-la – buscando alcançar, assim, um ganho de Justiça Tributária.

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Qual o mínimo existencial pode ser compreendido?

O mínimo existencial pode ser entendido como o núcleo de direitos prestacionais indispensável não apenas para a sobrevivência física do indivíduo, mas também no sentido da fruição de seus direitos fundamentais.

O que se deve entender por mínimo existencial e o que poderá ocorrer quando verificada a omissão por parte do Estado no que se refere a sua efetivação?

O mínimo existencial possui uma dimensão negativa, impedindo que Estado e outros indivíduos atuem contra a obtenção ou manutenção de condições materiais indispensáveis para uma vida digna e uma dimensão positiva, que abarca prestações materiais vocacionadas à realização deste mínimo.

Qual é o conteúdo mínimo da dignidade da pessoa humana?

Para Luís Roberto Barroso o conteúdo mínimo da dignidade humana, aceito no discurso transnacional, se divide em: a) O valor intrínseco de todos os seres humanos; b) A autonomia de cada indivíduo; c) Valor comunitário.