Como o crânio de Luzia afetou o debate sobre o povoamento da América?

Paloma Oliveto, Vilhena Soares, Humberto Rezende

postado em 03/09/2018 13:06

Entre as inúmeras peças abrigadas no Museu Nacional do Rio de Janeiro, destruído por um , o crânio de Luzia e sua reconstituição facial são duas das perdas mais lamentadas por pesquisadores brasileiros. Paulo Knauss, diretor do Museu Histórico Nacional, também no Rio de Janeiro, classificou a perda de Luzia como "inestimável para todos os interessados em civilização".

Luzia é de inestimável valor científico por se tratar do mais antigo fóssil humano já encontrado no Brasil e nas Américas. O crânio, pertencente a uma mulher que viveu há mais de 11 mil anos, foi descoberto em uma gruta da região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, em 1975, e é fundamental para se compreender como ocorreu a ocupaçãodo continente americano.

Na verdade, a descoberta de Luzia é o principal problema para os cientistas que defendem a tese de que o Homo sapiens chegou ao continente cerca de 11,2 mil anos atrás, a partir do Estreito de Bering. Essa teoria ganhou força depois de artefatos de uma cultura chamada Clóvis serem encontrados em um sítio do Novo México (EUA), no fim da década de 1920. Assim, por muito tempo, acreditou-se que esses norte-americanos constituíram o primeiro povoamento das Américas.

No entanto, com a descoberta de Luzia, a teoria dos "clovistas" perdeu força, porque, na velocidade com que se deslocava naquela época, seria impossível para o homem chegar tão rapidamente à América do Sul, argumentam pesquisadores que se opõem a essa explicação. A existência de Luzia, diz esse grupo, sugere que o Homo sapiens atravessou o Estreito de Bering antes do povo Clóvis, há cerca de 14 mil ou 15 mil anos, e, com o tempo, migrou para o sul.

Entre os cientistas que mais colaboraram para o fortalecimento dessa segunda teoria está o biólogo, antropólogo e arqueólogo brasileiro Walter Neves, responsável por batizar Luzia, nome escolhido em referência ao australopiteco etíope Lucy, fóssil de humanoide mais antigo já encontrado no mundo. Segundo ele, Luzia e várias outras descobertas, como novos fósseis, objetos e artes rupestres descobertos no Brasil e no Chile, representam um duro golpe na teoria clovista.


Uma mulher de 20 anos

Estudos de datação apontaram que o fóssil abrigado no Museu Nacional era uma mulher que estava na faixa dos 20 anos quando morreu, tinha 1,5m de altura e possuía traços negroides, com nariz largo e olhos arredondados. A reconstituição de seu rosto foi feita em 1999, por pesquisadores da Universidade de Manchester, na Inglaterra, que usaram como base o crânio.

O fóssil gerou ainda a denominação Povo de Luzia, que se refere aos primeiros homens e mulheres que habitaram a região arqueológica de Lago Santa. Porém, sabe-se, hoje, que o grupo ao qual Luzia pertenceu foi apenas um dos vários povos que viveram no lugar em diferentes períodos, vivendo da caça de animais de pequeno e médio portes e da coleta dos recursos vegetais disponíveis na região.

Tudo isso faz com que Luzia seja um tesouro não só brasileiro, mas mundial, uma peça-chave da história humana, avalia Mercedes Okumura, coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos da Universidade de São Paulo (USP). "É uma situação extremamente decepcionante, porque esses materiais não pertencem apenas ao museu, mas à humanidade. Todos perdem, não só o Rio de Janeiro", afirma. "Acredito que a Luzia tenha sido uma das peças mais icônicas perdidas nessa tragédia. Ela faz parte da discussão dos povoamentos das Américas, fez com que discutíssemos mais esse tema e foi uma das maiores fontes de produção científica do país", completa.

A teoria de que o povoamento das Américas teria se dado por duas levas migratórias vindas do nordeste da Ásia – com população de traços africanos e australianos – e outra de ameríndios semelhantes aos indígenas atuais acaba de ser desmontada.

Um estudo feito a partir de DNA fóssil, com amostras dos mais antigos esqueletos encontrados no continente, confirmou a existência de um único grupo populacional ancestral de todas as etnias da América.

Novo rosto de Luzia  (Divulgação/Fapesp/Direitos Reservados)

Com isso, o rosto com traços marcadamente africanos de Luzia – como foi batizado o crânio da jovem paleoamericana descoberto na década de 1970 – foi redesenhado. Esta é a nova face de Luzia.

O trabalho foi desenvolvido por 72 pesquisadores de oito países, pertencentes a instituições como a Universidade de São Paulo (USP), Harvard University, nos Estados Unidos, e Instituto Max Planck, na Alemanha.

Os dados arqueogenéticos – que mesclam conhecimentos de arqueologia e genética – mostram que todas as populações da América descendem de uma única população que chegou ao Novo Mundo pelo estreito de Bering há cerca de 20 mil anos.

Pelo DNA, é possível confirmar a afinidade dessa corrente migratória com os povos da Sibéria e do norte da China. Os resultados da pesquisa foram publicados hoje (8) da revista científica Cell.

Reconstrução facial

A primeira reconstrução facial de Luzia, uma mulher que viveu em Lagoa Santa (MG) há 12.500 anos, foi feita na década de 1990 pelo especialista britânico Richard Neave.

As formas tiveram como base a teoria do professor Walter Neves, da USP, segundo o qual o povo de Luzia, que se refere ao conjunto fóssil encontrado em Minas Gerais no século 19, teria chegado à América antes dos ancestrais dos povos indígenas atuais.

A primeira leva, portanto, teria características africanas ou dos aborígenes australianos. A teoria usava como base de comparação a morfologia craniana que indicava que esse povo era muito diferente dos nativos atuais.

O arqueólogo André Menezes Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, que coordenou a parte brasileira do estudo, explica que a contribuição de Neves permitiu saber que havia diferenças entre os habitantes ancestrais e os indígenas recentes, mas os estudos genéticos – com as tecnologias atuais – desmontam a tese dele de que essa diferença se deu no processo migratório entre continentes.

“Essa conexão com essa população anterior da África não existiu. A diferença entre Lagoa Santa e os nativos atuais tem origem dentro da própria América”, disse.

O novo rosto de Luzia foi feito por Caroline Wilkinson, da Liverpool John Moores University, na Inglaterra, especialista em reconstrução forense e discípula de Neave.

Os descendentes da corrente migratória ancestral que chegou pela América do Norte se diversificaram em duas linhagens há cerca de 16 mil anos.

Os integrantes de uma das linhagens cruzaram o istmo (pequena porção de terra) do Panamá e povoaram a América do Sul em três levas consecutivas e distintas.

A primeira leva ocorreu entre 15 mil e 11 mil anos atrás, e a segunda se deu há, no máximo, 9 mil anos. O estudo aponta a presença de DNA fóssil das duas migrações em todo o continente sul-americano. A terceira leva é mais recente – cerca de 4,2 mil anos – e se fixou de forma concentrada nos Andes centrais.

Os dados genéticos mostram que o povo de Luzia tem forte conexão com a cultura Clóvis, uma linhagem de humanos que fez o trajeto norte-sul há cerca de 16 mil anos.

Não se sabia até então que esse grupo havia migrado para o sul. Essa população, no entanto, não perdurou por muito tempo.

“A partir de cerca de 9 mil anos atrás ela desaparece, sendo substituída pelos ancestrais diretos dos grupos indígenas que habitavam o Brasil durante o período colonial”, indica o estudo. Não são conhecidos os motivos que levaram ao desaparecimento dos grupos Clóvis.

Contribuição

Strauss explica que a nova técnica de arqueogenética traz informações que até então não eram acessíveis aos arqueólogos.

“Ela abre um mundo de possibilidades analíticas, não só de relações de ancestralidade, miscigenação, determinação de sexo, estabelecer relações de parentesco, investigar o fenótipo, investigar doenças, investigar o metagenoma, é uma infinidade de tipos de estudo e informações que a gente passa a poder tirar”, apontou.

Ele explica que esses avanços tecnológicos se deram aproximadamente nos últimos dez anos, especialmente pela atuação do Instituto Max Planck, e estão revolucionando os estudos arqueológicos.

No caso dos fósseis de Lagoa Santa, uma das dificuldades foi a extração do DNA, tendo em vista o clima tropical que deteriora mais rapidamente o material genético.

“Em 2012, começamos as primeiras tentativas, ainda um pouco tímidas. No começo não estava dando certo, então levou pelo menos dois anos para a gente aprender como era um protocolo de extração de DNA que funcionasse para Lagoa Santa”, relatou.

O instituto alemão, no entanto, já tinha conseguido extrair DNA neandertal em 2010. Dos 49 indivíduos pesquisados, sete esqueletos com idade entre 10,1 mil e 9,1 mil anos são provenientes de Lapa do Santo, abrigo rochoso em Lagoa Santa.

Além do Brasil, foram utilizados fósseis da Argentina, Belize, Chile e Peru, totalizando 15 sítios arqueológicos.

Strauss destaca que os próximos passos da pesquisa envolvem o aumento da amostragem de DNA para entender com mais detalhes o processo de ocupação da América.

“Encontrar outras populações, outros sítios arqueológicos e esqueletos, que a gente possa extrair o material genético para entender quando exatamente que essa população chega, qual a relação deles com outras populações”, explicou.

Um laboratório de arqueogenética deve ser montado no Brasil, na USP, em 2019. “A gente espera virar um centro que atraia os colegas latino-americanos para realizar as análises aqui, sempre em colaboração com os colegas da Europa e dos Estados Unidos”, disse o arqueólogo.

Crânio de Luzia

Quase uma centena de crânios escavados por Neves e Strauss nos últimos 15 anos se encontram atualmente na USP.

Muitas das campanhas de escavação tiveram financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Outros fósseis estão guardados na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Crânio de Luzia estava no Museu Nacional, no Rio, mas acervo foi destruído por incêndio em setembro deste ano    (Ricardo Moraes/Reuters/direitos reservados)

De acordo com a fundação, no entanto, a grande maioria desse acervo arqueológico estava depositada no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o qual foi consumido por um incêndio no dia 2 de setembro deste ano.

O crânio de Luzia estava exposto no museu carioca ao lado do busto com suas feições feito por Neave. A representação do rosto original perdeu-se no fogo, mas há cópias. Felizmente, fragmentos do crânio foram encontrados nos escombros.

Trata-se de um dos mais antigos fósseis já encontrados no continente americano. “É natural que se estenda o que foi observado para os 12 esqueletos analisados agora, o que é bastante. Praticamente todos eles apontam na mesma direção, a gente assume que a Luzia também seja. Claro, não tem como ter certeza sem analisar o fóssil”, explicou Strauss.

Ele informou que deve ser extraído DNA dos fragmentos do crânio de Luzia, recuperados do incêndio, a partir da liberação do material pela curadoria do Museu Nacional.

“O material foi exposto a temperaturas altíssimas e se tem uma coisa que o DNA não gosta é de calor, porque ele fragmenta o material. Temos que manter as expectativas em níveis comedidos”, finalizou.

Como o estudo do crânio de Luzia afetou o debate sobre o povoamento da América?

A ideia surgiu porque os pesquisadores estudaram as medidas do crânio de Luzia e acharam que ele era mais largo do que os dos indígenas e mais parecido com o dos africanos. Mas o resultado do estudo mostrou que a Luzia vai precisar de um rosto novo.

Qual foi o impacto da descoberta do crânio de Luzia?

A descoberta teve grande impacto na ciência por mudar a teoria de povoamento do continente americano. Os fragmentos encontrados ainda não podem ser atribuídos como sendo realmente Luzia, porém os pesquisadores consideram que as chances são bem altas.

Qual foi o impacto da descoberta do crânio de Luzia para as teorias de migração do ser humano moderno para a América?

Com essa comprovação, a teoria de que duas populações teriam povoado as Américas não faz mais sentido. O povo de Luzia chegou à América junto com todas as demais populações que vieram do continente asiático.

Qual foi a importância do fóssil de Luzia para o crescimento do povoamento humano da América?

O fóssil da mulher de olhos grandes serviu de base para o bioantropólogo Walter Neves, da USP, propor, no final da década de 1980, que os primeiros habitantes do continente tinham a morfologia craniana diferente dos habitantes atuais da América.

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