Como é o ambiente onde vivem as comunidades tradicionais?

Drauzio Varella é médico cancerologista e escritor. Foi um dos pioneiros no tratamento da aids no Brasil. Entre seus livros de maior sucesso estão Estação Carandiru, Por um Fio e O Médico Doente.

As comunidades tradicionais têm papel importante na conservação da natureza, mas suas práticas vêm sendo constantemente ameaçadas nos últimos anos.

Com técnicas de cultivo que respeitam a natureza, as comunidades tradicionais adotam formas de viver que ajudam na manutenção da biodiversidade. No entanto, a interferência nas dinâmicas que fundamentam essas sociedades, como as invasões aos locais onde vivem e o desrespeito aos seus costumes, levam ao aumento da violência e de doenças infectocontagiosas.

Durante a pandemia de covid-19, por exemplo, a negligência com as comunidades tradicionais levou à disseminação de fake news e altíssimos índices de mortes. Assista ao vídeo e entenda a importância e os desafios desses grupos na defesa do ecossistema.

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O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) preside desde 2007 a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais (CNPCT), criada por meio do Decreto de 27 de dezembro de 2004 e reformulada pelo Decreto de 13 de julho de 2006. Fruto dos trabalhos da CNPCT, foi instituída, por meio do Decreto 6.040 de 7 de fevereiro de 2017, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). A PNPCT foi criada em um contexto de busca de reconhecimento e preservação de outras formas de organização social por parte do Estado. 

De acordo com essa Política, Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) são definidos como: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

Entre os PCTs do Brasil, estão os povos indígenas, os quilombolas, as comunidades tradicionais de matriz africana ou de terreiro, os extrativistas, os ribeirinhos, os caboclos, os pescadores artesanais, os pomeranos, entre outros.

Em relação a esses povos, o MDS apoia projetos específicos para a estruturação da produção familiar e comercialização, que auxiliam as famílias a produzirem alimentos de qualidade, com regularidade e em quantidade suficiente para seu autoconsumo e geração de excedentes. Esses projetos são realizados em parceria com outros órgãos que atuam junto aos PCTs, como a FUNAI (Fundação Nacional do Índio), o MMA (Ministério do Meio Ambiente) e o MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), SEPPIR (Secretaria de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial), entre outros.

Nesse sentido, o MDS busca ampliar o acesso desses povos a ações como Acesso à Água, Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais. 

Além disso, em 2012, foi instituído, no âmbito do MDS, o Comitê Técnico (CT10) [1], da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), intitulado Comitê Técnico de Povos e Comunidades Tradicionais (CTPCT), com o objetivo de apoiar e garantir ações voltadas para PCT, em consonância com o Decreto nº 6.040/2007 (PNPCT). 

Em meio às más notícias dos últimos tempos, a defesa do meio ambiente e dos direitos humanos no Brasil obteve uma importante vitória no dia 16 de julho. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confirmou a decisão do Foro de Iguape, dando ao casal Edmilson Prado e Karina Otsuka, e seu filho de 9 meses, Martim, o direito de permanecer por ora em sua residência na Jureia, litoral sul do estado. A família de caiçaras vive há gerações na região.

Em 2019, Edmilson e Karina quase foram expulsos de sua casa, localizada em território sobreposto à Estação Ecológica Juréia-Itatins, criada em 1986. Uma equipe a serviço do governo do estado demoliu duas casas de famílias tradicionais, mas se deteve ante a gravidez de Karina, que na época ainda esperava o nascimento do filho. A recente decisão judicial desautoriza o despejo imediato da família, fortalecendo o pleito dos caiçaras da Jureia como um todo, mas a incerteza sobre o destino das comunidades tradicionais que vivem em unidades de conservação ambiental de proteção integral por todo Brasil ainda parece longe de ser resolvida.

Famílias caiçaras como a de Edmilson e Karina praticam, há centenas de anos, pesca, extrativismo e agricultura de pequena escala na Jureia. Pesquisadores apontam que esse manejo do território contribuiu para a proteção e manutenção dos ecossistemas associados à Mata Atlântica e é compatível com a conservação da biodiversidade 1 . No entanto, embora a lei estadual que institui o mosaico de unidades de conservação da Jureia-Itatins possibilite a permanência das comunidades tradicionais na área da estação ecológica, o governo estadual tem atuado, direta ou indiretamente, no sentido de sua remoção com base na legislação ambiental. Dessa forma, pune-se justamente quem deveria ser recompensado por haver protegido a biodiversidade brasileira durante o período em que 93% da Mata Atlântica foi derrubada.

Não é de hoje que as comunidades tradicionais têm avançado o debate sobre políticas públicas, mobilizando parcerias com outros povos da floresta, além de universidades e órgãos jurídicos

Tal injustiça não é um caso isolado. Comunidades tradicionais como as caiçaras têm o direito de manter seus modos de vida garantidos pela Constituição Federal, assim como os povos indígenas e quilombolas. Outras leis, como o decreto n. 6.040 e a lei n. 9.985, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, asseguram que povos tradicionais têm direito a seus territórios. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (que foi aprovada pelo Congresso e tem força de lei no Brasil) é outro instrumento jurídico que deveria forçar o governo a garantir que povos tradicionais não sejam expulsos de suas terras. Mas, se já é difícil para indígenas e quilombolas garantirem seus direitos, para povos tradicionais que não se encaixam nessas categorias a invisibilidade é ainda maior, o que resulta em violações de direitos por todo Brasil.

A Estação Ecológica da Terra do Meio e o Parque Nacional da Serra do Pardo, localizados no município de Altamira e São Félix do Xingu, no Pará, foram criados em uma área da Amazônia habitada por descendentes de seringueiros que chegaram à região no começo do século passado. Tal como aconteceu no litoral de São Paulo, desde a criação das unidades de conservação, em 2005, muitas famílias abandonaram a floresta que elas conservaram em pé ou passaram a vivenciar formas de criminalização de seus modos de vida. Tais formas incluem medidas que restringiam atividades fundamentais, como a pesca, o extrativismo e a roça, e lhes negavam saúde e educação. A lógica perversa é que o Estado se furtava, até pouco tempo, à sua obrigação constitucional de prover acesso à educação, porque essas famílias não deveriam morar ali, segundo a legislação.

Há décadas, povos tradicionais buscam soluções para o descompasso entre legislação ambiental e direitos garantidos pela Constituição. A luta dos seringueiros, liderada por figuras como Chico Mendes, ajudou a criar as reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, modelos jurídicos que, em que pesem eventuais limites, reconhecem as formas específicas de saber, viver e fazer dos povos tradicionais. Esses modelos também propiciam parcerias com o governo para proteger as comunidades de invasões de grileiros e madeireiros, por exemplo. Não é de hoje que as comunidades tradicionais têm avançado o debate sobre políticas públicas, mobilizando parcerias com outros povos da floresta, além de universidades e órgãos jurídicos.

No caso da Jureia, a elaboração do chamado Plano de Uso Tradicional, liderado pelos caiçaras e com apoio de cientistas e juristas, é um exemplo desse amplo diálogo. O plano alia o conhecimento tradicional caiçara ao acadêmico e legal e propõe medidas para contemplar os direitos dos caiçaras e criar compromissos visando à conservação ambiental. No plano, a comunidade formaliza acordos coletivos em que a terra não é concebida nem como propriedade privada, nem como domínio do Estado manejado por agências do governo. A participação central de pesquisadores caiçaras na elaboração do plano aponta, ainda, para uma transformação do conhecimento produzido na universidade, algo que já tem se evidenciado há algum tempo na produção científica de povos indígenas e quilombolas. A plena potência dessa formas de produção de conhecimento assenta-se, porém, na garantia de seus territórios tradicionalmente ocupados. Os órgãos ambientais do governo, contudo, ainda não souberam reconhecer o valor que o conhecimento local pode aportar à legislação e, ao invés de aceder ao diálogo, insistem nas ordens – diretas ou indiretas – de despejo.

No caso da Terra do Meio, um termo de compromisso foi construído entre o governo e as comunidades tradicionais beiradeiras que vivem às margens do Xingu e o Iriri. O compromisso busca evitar que restrições ambientais dificultem a vida de quem melhor sabe cuidar do território. É um passo na direção certa, mas ainda insuficiente, dado que o governo considera esses acordos temporários. O diálogo entre populações tradicionais e órgãos ambientais deve almejar uma situação permanente de respeito à autonomia comunitária. Nas palavras de Karina, “o nosso sonho é viver com liberdade dentro do nosso território, respeitando os acordos da comunidade” 2 .

A insistência do governo em legislar sem escutar as demandas das comunidades significa que muitas das normas que regulamentam a vida dentro das unidades de conservação não condizem com a realidade de quem mora lá. Por exemplo, uma família de beiradeiros tem permissão para morar de um lado do rio, mas a outra margem, onde a mandioca cresce melhor, foi designada área de proteção integral e não pode ser tocada. O cartógrafo que decidiu que a fronteira entre as duas áreas seria o rio provavelmente se inspirou nas fronteiras entre países, como o rio Paraná, que separa o Brasil do Paraguai. Mas não entendeu que, no modo de vida local, o rio não separa territórios distintos. O rio é o principal unificador do território, a via que permite as trocas, as visitas, e o acesso a áreas produtivas, tudo que faz do grupo uma comunidade.

A única maneira de aprimorar a política pública ambiental em áreas ocupadas por comunidades tradicionais é aproximá-la da realidade das pessoas que melhor conhecem o território. Ou seja, as comunidades que moram nessas áreas e sabem como preservá-las devem ser as responsáveis por fazer as leis regulando seu uso.

A democratização da política pública ambiental é o único caminho para cumprir os requisitos da legislação. Mas tentativas de aliar conservação ambiental e direitos de povos tradicionais frequentemente esbarram em uma visão mítica da natureza como algo externo, a ser estudada ou visitada durante o fim de semana. É preciso superar a ideia que a única relação possível entre humanos e o mundo que os cerca é predatória: as comunidades tradicionais oferecem justamente exemplos de modos de vida que conservam o meio ambiente. Devemos tomá-las como especialistas e aprender essa importante lição.

Os artigos publicados na seção Opinião do Nexo Políticas Públicas não representam as ideias ou opiniões do Nexo e são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Como é o ambiente das comunidades tradicionais?

Povos e Comunidades Tradicionais vivem protegendo seus territórios e seus recursos naturais. São esses territórios e os conhecimentos de quem vive neles que subsidia a “invenção e a descoberta” de novos medicamentos, curas, cosméticos e muito mais.

Como vivem os povos tradicionais no território brasileiro?

Através de formas próprias: de organização social, do uso do território e dos recursos naturais (com relação de subsistência), sua reprodução sócio-cultural-religiosa utilizando conhecimentos transmitidos oralmente e na prática cotidiana.

O que os povos tradicionais fazem com o meio ambiente?

Com técnicas de cultivo que respeitam a natureza, as comunidades tradicionais adotam formas de viver que ajudam na manutenção da biodiversidade.

Como as comunidades tradicionais lidam com o meio ambiente?

Por isso, partindo desta perspectiva, os povos tradicionais possuem uma tendência maior a não gerar grandes impactos ambientais porque sua cultura e tradição pregam a coletividade, o respeito aos ciclos naturais do planeta e o entendimento de que os recursos essenciais para a sobrevivência são finitos.

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