A meritrocacia só funciona quando partem do mesmo lugar cortella

Currículo escolar desenvolvido nas escolas privadas é, em geral, mais avançado e explora mais conteúdos que os das escolas públicas (Foto: Reprodução)

Enquanto milhares de estudantes no país se preparam para mais uma edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), um estudante baiano está trilhando um caminho de destaque rumo a uma faculdade nos Estados Unidos.

Aos 17 anos, ele conseguiu um feito raro: alcançou a pontuação 1540 no exame SAT,  prova que é como um Enem estadunidense, realizado por estudantes de várias partes do mundo. A nota máxima é 1600 e, mesmo entre os estudantes americanos, a média é 1000. De acordo com o próprio exame, o baiano ficou entre o 1% de alunos que mais acertaram em todo o mundo.

Com a conquista, Pedro Anibal, que mora em Feira de Santana e acabou de concluir o 3º ano do ensino médio, está a um passo de realizar o sonho para o qual ele vem se preparando há três anos: ser universitário nos Estados Unidos.

O abismo

Com todo aplauso que a conquista de Pedro merece, ela também denuncia um enorme abismo entre as possibilidades oferecidas a alunos de escolas públicas e privadas e, por tabela, as possibilidades de futuro oferecidas a jovens ricos e pobres.

Isso porque por trás do desempenho de Pedro há uma série de fatores, alguns deles indisponíveis para estudantes do ensino médio de escolas públicas: inglês fluente, recurso financeiros para pagar a inscrição no exame, que custa U$ 62 (algo em torno de R$ 300) e viajar até uma das 17 cidades no Brasil em que a prova é realizada e tempo - muito tempo livre - para estudar. Pedro, por exemplo, chegou a estudar 11 horas por dia.

O apoio da escola também foi fundamental. Pedro é aluno da Helyos umas das escolas particulares mais renomadas - e caras - da cidade, talvez do estado. Na instituição, ele participou de um projeto cujo único objetivo é preparar os alunos para disputar uma vaga em universidades estrangeiras.

A falácia da meritocracia

Se Pedro fosse aluno de escola pública, o sonho do jovem, a despeito da sua inteligência e capacidade intelectual, teria esbarrado na falta de oportunidade.

E não só pela possibilidade de realizar o exame: é senso comum que o currículo escolar desenvolvido nas escolas privadas é, em geral, mais avançado e explora mais conteúdos que os das escolas públicas. Sem falar nos métodos de ensino e aprendizado, também mais atualizados nas instituições particulares.

Outro fator determinante, contudo, é o contexto social em que o aluno está inserido e como ele influencia - positiva ou negativamente  - no sucesso acadêmico.

Em um vídeo, extraído de uma entrevista à Jovem Pan, que viralizou na internet, o professor e filósofo Mário Sergio Cortella fala sobre o desequilíbrio sustentado pela ideia da meritocracia, segundo a qual, se a pessoa não alcançou determinado objetivo é porque não se dedicou o suficiente para tal.

O conceito, como apontou o professor, é um erro. "Nessa hora humildade intelectual é importante. Meritocracia é um tema que só tem presença válida quando todos partem do mesmo ponto de igualdade. Caso todos partam do mesmo lugar, ok", disse o filósofo.

Relatando a própria experiência como exemplo, Cortella contou que foi colega de classe alunos, que precisam trabalhar para se sustentar, no turno oposto às aulas, um deles, à noite e outro, além de trabalhar, morava sozinho. Ele mesmo, relembra, vivia em um lar bem estruturado e não tinha essas preocupações.

"Eu não fiz nada mais do que aproveitar as condições que eu tinha. E os outros ficaram para trás, mas não porque eram vagabundos. Isso significa que o mérito tem que ser avaliado quando a gente tem igualdade na hora da partida.", ressalta ele.

As implicações do ambiente nas possibilidades de desenvolvimento de uma pessoa são muito mais profundas que o impacto do cansaço físico e da falta de dinheiro, como explica o professor e fundador da Universidade Federal do ABC, Guilherme Brockington.

"O que a gente sabe hoje é que, para aprender, é preciso que haja uma interação muito complexa entre o ser biológico, o ser psicológico e o ambiente sociocultural.", aponta Guilherme.

"Uma criança que foi desprovida de alimento na fase inicial da sua vida já tem um prejuízo muito grande na aprendizagem, comparado a uma criança que foi bem alimentada na mesma fase, ainda que elas estudem na mesma escola. Uma criança que vive num lar conturbado, que vive com medo de alguma coisa, tem dificuldade de aprender e, por fim, uma criança que não tem acesso à cultura dificilmente aprende", enumera.

Ainda de acordo com o especialista, "a ideia muito disseminada na cultura brasileira de que 'a meritocracia é o que importa' e que no fundo somos todos iguais e se a pessoa não chegou lá é porque não se esforçou, a neurociência mostra que é uma balela. O desenvolvimento humano requer muito mais do que muita gente acredita", aponta ele.

Caminhos

A professora aposentada com quase 40 anos de experiência, Maria do Carmo Souza, aponta que só existem dois caminhos possíveis para equilibrar a condição de aprendizagem vivenciada por esses dois grupos de estudantes. "Ou o governo equipara a qualidade do ensino das públicas às particulares ou diminui a dificuldade da prova do Enem", aponta ela.

Maria, que atuou desde a educação infantil até o ensino de jovens e adultos e passou nove anos na escola do sindicato da Petrobrás, aponta que não é tão difícil equilibrar a balança, depende apenas de vontade política. "Materiais bons nós temos, falta fiscalizar os professores e melhorar o salário dos professores, porque é impossível fazer um trabalho de excelência quando se tem que trabalhar três turnos para sustentar a família", avalia ela.

Itamara Kelly, que atualmente é professora da rede pública, mas já foi diretora e proprietária de escola particular, aponta a segurança alimentar como necessidade básica.

"Eu já tive alunos que entravam na sala nervosos, agitados e quando eu perguntava o que estava acontecendo eles me diziam que não tomaram café da manhã ou não almoçaram. Ou então, entrar na sala às 13h e o aluno estar comendo salgadinho e, quando eu questionei o horário, ele me respondeu que não tinha nada para almoçar em casa. Isso é doloroso.", relata ela, falando de alunos do fundamental 1, ou seja, crianças de até 10 anos.

"Precisa ter esse olhar para a sociedade. Alimentação é imprescindível, ninguém funciona de estômago vazio, principalmente crianças. Hoje, no município onde eu trabalho, só são oferecidas todas as refeições para os alunos da creche, de 1 ano e 8 meses até três aninhos. E os outros? Seria interessante que as prefeituras oferecessem alimentação completa para todos", aponta ela, relembrando o projeto Mais Educação, que oferecia educação - e alimentação - em tempo integral para crianças, mas foi descontinuado em 2016, pouco após o impeachment de Dilma Rousseff.

Pedro Anibal, 17 anos, acabou de concluir o 3º ano do ensino médio (Foto: Reprodução | Correio da Bahia)

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